Das palavras das cartas · Mariana Gouveia · Scenarium Livros Artesanais

a carta foi escrita com os espinhos que ninguém plantou

Diva,

eu já te contei sobre o moço da reciclagem e de como ele sofre por amor? um dia desses, quando eu colocava o lixo reciclável lá fora, ele virou a esquina. Ele cantarolava uma canção que fala de despedida e sobre não ter aprendido a dizer adeus. Ele me fez um pedido estranho, Diva. Pediu que eu escrevesse uma carta de amor para o amor dele.

Te conto isso, porque ele mora na rua de cima, quatro casas depois da sua. O olho dele tinha poesia dentro quando ele me perguntou se eu escrevia cartas para as pessoas e me disse que foi você quem falou, Diva. Como posso escrever cartas falando sobre sofrer de amor? Já não basta o meu?

Mas, confesso que fiquei com pena e nos sentamos debaixo do pé de ipê enquanto o olho dele se alongava no jardim, para além das flores. Diva, escrever sobre o amor dos outros é dolorido. Você sente na alma.

Enquanto ele me dizia o que queria passar na carta, ele se perdeu nas memórias, Diva. Ele estava na minha frente, com o copo de água na mão, mas sua alma parecia em outro canto. Quando ele me contava sobre o amor dele e de como ela havia ido embora e ele só precisava saber se um dia ela voltaria, eu fiquei buscando palavras além de mim.

As flores do meu quintal foram testemunhas de que busquei em outras dores que senti para que as palavras minhas se transformassem nas dele, Diva. A carta foi escrita com os espinhos que ninguém plantou… foi o que ele disse para mim, no final, já com o envelope nas mãos, como se fosse um tesouro.

Ninguém planta espinhos, menina! – ele repetiu mais de uma vez a frase. A gente só planta flores. O espinho, vem junto. As flores do Orai pro nóbis estavam em plena floração e ele usou a metáfora dos espinhos da planta, Diva. O olho dele perdido, no amor que se foi…

Tentei dizer que quando a gente ama, sofrer também faz parte. Mas, ele com o envelope no peito se emocionava com o que escrevi. Depois disso, ele virou a esquina e seguiu rua afora, Diva… enquanto fiquei aqui pensando se ele conseguirá reciclar esse amor que mexe tanto com ele ou sentirá apenas os espinhos que o amor contém.


Mariana Gouveia
Projeto Blogvember – Scenarium Livros Artesanais
Participam juntos comigo: Lunna Guedes – Obdúlio Nunes Ortega – Roseli Pedroso Suzana Martins
Ph: Elena Vizerskaya

7 comentários em “a carta foi escrita com os espinhos que ninguém plantou

  1. Gosto dos espinhos, tenho uma planta aqui que tem apenas espinhos. São uma proteção. Mas o sentimento não é espinhoso. Nós somos. E gostamos de sofrer e dizer que é por amor. Eu prefiro respirar, fazer silêncio e sentir as cores do dia, da vida, da realidade. Uma hora tudo isso se esvai e viramos Ar…

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