Das palavras das cartas · do verbo voar · Mariana Gouveia

E se floríssemos em preto

e branco como as divas mudas?

Carmen Picos

Ph: Gaëna da Sylva 

Carmencita,

só hoje soube de sua partida há tantos meses atrás e como prometido te escrevo. Gil canta no repeat. Reli as nossas mensagens até chegar em seu silêncio. Como alguém vai embora assim sem tempo de despedida? Depois, suspirei e agradeci por ter tido a honra de ter você em minha vida, mesmo que por trás dessa tela.

Ficou para trás a promessa do encontro, do abraço, dos poemas que eu leria e dos que faríamos juntas – quem sabe, um dia, para além dos mistérios que a gente desconhece isso não aconteça – ficou em mim o carinho que sempre me dedicou e da diva maravilhosa que se transformou aos meus olhos.

Eu te dava relatos diários do Chiquinho e você falava de música e agente falava de filhos. De gatos, de animais, de flor, de luta de Brasil e do mundo. Você me levava Espanha afora… madrecita, arriba e cariño…

Eu te achava revolucionária e você era fã do Che e de tantos outros que eu reverenciava também – e dos risos… – e a gente ria através de letras… era tantos kkkkkk e tantos hihihihi, hahahaha e tantos uias… e um dia de repente a gente se declarou… um eu te amo se confrontou com o eu também e o tu me faz bem e o Carmencita virou sinônimo do meu carinho.

Te contei sobre meu milagre de cura e você falou do milagre do universo que liga pessoas de lugares distantes como se fizessem parte da família. E assim, a gente foi tantas em mensagens únicas que nunca apagarei. Serão como mantras em dias difíceis.

Você é minha diva onde quer que esteja, em qualquer lugar do universo ou apenas em meu coração. Você será meu sorriso quando uma lembrança me trouxer você e quando um pássaro atravessar o céu seu sopro chegará até mim como se fosse abraço.

Voa, pequeninha!

Abraço carinhoso
Mariana Gouveia

Mariana Gouveia · Plural · Scenarium Livros Artesanais

Carta aos cuidados do mar

Querida minha,

O dia acontece sem demora. A chuva antecipa a vagareza nos gestos.
O guarda-chuva quebra e o vento leva o pedaço rumo ao muro gigante da rua de cima.
E eu me lembro de você sempre que alguém assovia uma canção conhecida – que liga a tua  à minha e faz com que o som pareça ecoar dentro de nossa história.
O acaso, é essa fotografia que vejo dependurada na parede e tem suas iniciais gravadas no peito, enquanto a trovoada ecoa lá fora… As gotas, trovões e um pedaço do céu a alaranjar no Oeste – são gritos de sua alma na minha.
Ainda sinto o tatear de suas mãos a tocar-me com o desejo nos gestos. Vejo vestígios de um sapato na enxurrada e teu sotaque a relembrar uma curva do mar em que os calçados continham liberdade de alguém.

Bebo a chuva na palma da mão. A madrugada tem o dom de perdurar dentro das manhãs sonolentas. O sabor agridoce na boca dos teus sabores em mim. A leveza da pele úmida de vontades e ainda o encontro que não veio – e eu apenas o imagino.

Na volta, a chuva já se foi e o dia tem aspecto de inverno. Apenas a palavra da estação vibra em mim e penso nos instantes mágicos madrugadores que a gente viveu.

Na memória, sua pele trouxe a leve ironia das manchinhas nas costas. Nem era de Deus essa pele com pintas, onde desenhei nas pontas dos dedos o mapa imaginário do teu lugar.  Sinto que estou em você, e pensando nisso me aninho em teu colo como miolo de flor.

Me coloquei dentro das histórias de um outro país que você já visitou. Não era seu perfume que exalava… Era a rua de alguma cidade estranha e suas lâmpadas a iluminar as sombras nas calçadas; sou levada dentro da história e respiro a canção… 

Lembrei-me da dedicatória de um poema seu. O vulto das suas letras em carvão quase desenhando corações nas rotinas do dia. Fui me desmanchando nas suas poesias como líquido que escorre afoito feito rio que deságua no mar…

Era pouco, tão pouco ali o mar – tão imenso em seu alcance com o céu – a beijar o sol com suas rotinas de aves e gaivotas. Era pouco e era tanto e quanto aquele rio pedinte de toque, de encontro. E no pulsar das margens que o ladeiam, o suspiro, e era tanto – um mar de saudade – um rio de água doce de vontade nos gestos dos dias.

O avesso do mundo é essa lonjura nos mapas que vi nos livros de histórias onde te invento uma história com final feliz para nós duas.

Beijo

Mariana Gouveia
Carta publicada na Revista Plural Erótica – Scenarium Plural Editora
Agosto 2019
*imagem: Jonas Hafner

6 on 6 · Das palavras das cartas · Mariana Gouveia · Scenarium Livros Artesanais · Via Solar

6 on 6 – Solar

A primeira vez que vi o sol nascer nesse lugar perguntei para minha mãe se aqui era mais perto do céu.

Leonor,

lembrei-me de te escrever para falar do quanto meu lugar esteve solar nesse verão. Você conhece os dias quentes daqui e também sabe bem das manhãs ensolaradas. Já te contei que a primeira vez que vi o sol nascer nesse lugar perguntei para minha mãe se aqui era mais perto do céu. Sabe o que ela respondeu, Leonor? Ela disse que o sol mais perto do céu é o que brilha no coração da agente.

Acho que já vivi aqui muito mais dias ensolarados do que nublados. Já te contei que aqui tem apenas a estação do sol, não contei? Tudo aqui é solar desde o amanhecer, Leonor e sabe de uma coisa? Mesmo que reclamando de alguns dias mais quentes, eu estranho o dia que ele não aparece. Mas, isso é tão raro e você pode perceber isso quando esteve aqui.

O mais encantador disso tudo é que ele muda as cores do céu, conforme a hora, o dia e do jeito que as nuvens estão. As ruas também, Leonor, se vestem de dourado e é como se estivessem preparadas para a festa.

Os dias tem sido mais quentes por aqui, Leonor e fico pensando em como você reclamaria se ainda vivesse por aqui. E como vivemos totalmente o oposto do tempo, eu fico boba com as nuances sobre o tempo que as moças da previsão – tanto daqui quanto a daí – erram na discordância do que é bom. Para a que fala na minha TV o tempo fica bom em grande parte do país, podendo chover a qualquer hora. Para a que fala para você aí, os 23º que para mim já é quase frio, faz a terra escaldar de calor.

Nem vou falar sobre a causa desse mudança de tempo no mundo todo, nem do descaso que os países têm com o meio ambiente… o que eu queria mesmo era te falar que quando vejo o sol nascer em todas manhãs, as lembranças me trazem você e nosso silêncio reverenciando o astro rei.

Também me lembro de todos os ocasos que assistimos juntas… e quando o sol se põe trazendo a noite, as minhas memórias te coloca num lugar bonito dentro do coração e acho que compreendo cada vez mais os finais. Sejam os de todo dia quando o sol se vai quanto os de amor que cumpriram seu papel. Mas ainda assim, eu sinto saudades tuas.

Mariana Gouveia
Mariana Gouveia
Projeto Fotográfico 6 on 6
Scenarium Livros Artesnais
Participam comigo:
Lunna Guedes – Roseli Pedroso e Suzana Martins Obdúlio Nunes Ortega

Das palavras das cartas · do verbo voar · infinitamente · Mariana Gouveia

Carta para Luci aos cuidados de Chiquinho

Gosto de você porque sei que pararia tudo
pra ficar olhando um passarinho perdido
na sacada numa manhã que exigisse sua pressa.
Luciane Recieri

Luci,

vi que você viu sua sombra, assim, de relance e eu corri na parede para encontrar a minha. Aqui já escurece, Luci e teve um temporal daqueles… mas como já se tornou rotina nas minhas tardes, logo que passa a chuva o sol vem em seus variados tons encantar meu quintal.

Durante a tempestade Chiquinho vem se aquecer em minhas mãos, mas logo voa rumo ao varal para se esbaldar na chuva. Acho lindo isso, Luci e fico com as mãos abertas esperando ele retornar.

Quis te contar isso no seu dia – não que os outros não sejam – e vim te abraçar dentro da nossa história. Já são alguns anos que começo março nesse ritual para te abraçar. Mas devo confessar, Luci, que parece que é desde sempre. Você não sente isso?

Dizem, Luci, que a probabilidade de duas pessoas se encontrarem e terem algo em comum é uma em duzentas mil… Conhecer alguém, Luci, é uma em dois  milhões… Isso é muita coisa… Ficar próximo dessa pessoa, é de uma em vinte milhões. Já imaginou isso nesse mundo de Deus, Luci? Chamá-la de amiga, então, é de uma em duzentos milhões. Fiquei pensando que estamos nesse tanto de milhões.

Eu já conheço seus bichos, sua fada – Anna – seus silêncios e você já sabe dos rumores de minhas borboletas, do meu Chiquinho e de minhas poesias. Você atravessou uma rodovia inteira e entrou inquietante na Mário de Andrade para me ver. Até ali, a gente era amiga de longe e você trouxe a chave e abriu meu coração. Tomou posse da parte sua que vive aqui, dentro de mim.

Mesmo que eu fure todas as paredes e encontre o estuque azul, nunca vou esquecer do sentimento de fome do seu pai e do seu, Luci e nem do que o pajé mandou eu te dizer. Isso já fazem mais de quatro anos, lembra?

Vim de novo reforçar o meu desejo para que você seja essa leveza de alma, que continue gostando de ratos, corujas e de sinos. Que seja sempre colo para os bichos e mãos estendidas para os amigos, Luci. que suas mãos sejam afagos sempre para os pássaros seus assim como as minhas são para os meus.

Te amo, te abraço,

Feliz aniversário1
Mariana Gouveia

azul em qualquer céu. · Das palavras das cartas · Mariana Gouveia · Via Solar

Cabe fevereiro em um dia inteiro

Meu ser fóssil
pulsante
sedimentar
tectônico
entalhado na rocha
arrancado da litosfera
marcado no tempo
prestes a eclodir
na imensidão geográfica
da crosta terrestre


Suzana Martins

Su, minha menina nuvem

te escrevo na intimidade das horas logo depois da chuva que se formou para os lados do sul. Para meu espanto, o jardim gotejou, as flores do ipê se rebelaram e caíram todas de uma vez, formando um tapete amarelo molhado.

Enquanto eu ainda secava a água da varanda o céu me chamou como se quisesse que eu visse algo ali, para além dos muros. Um arco-íris lindo se desenhou e fevereiro coube intenso dentro de um dia. Corri para rua e ali comecei a escrever mentalmente essa carta para você.

Você acredita em coincidências, Su? Confesso que quase não acredito. Acho que sempre há um porquê das coisas acontecerem. Mas a minha alma de escritora se espanta com a singeleza que o destino me traz na palma da mão. Te perguntei sobre as coincidências porque justamente quando eu comecei a te escrever vi sua mensagem e seu arco-íris na janela do WhatsApp…

Ph: Suzana Martins

Sabe, Su, uma fotografia apenas não te mostra esse céu que me encanta por aqui. fevereiro aqui passou como um relâmpago e houve tantos dias dentro de um mesmo dia por aqui, além das trovoadas. .. mas também teve dias em que as nuvens pareciam feitas de algodão. E hoje foi um dia em que aconteceu de tudo no meu lugar.

Agora mesmo, Su, enquanto finalizo minha carta, o céu parece de outro mundo. E já há uma lua em seu quarto crescente. E o arco-íris se derreteu como se com isso formasse um elo entre eu e você.

Sou grata por você em minha vida!
abraço carinhoso ❤

Mariana Gouveia

Das palavras das cartas · Mariana Gouveia

Tipo assim…

Da janela do ônibus as coisas passam por mim e eu escrevo enquanto o engarrafamento aumenta. Reparo nas coisas e nas pessoas para te contar. As personagens se multiplicam entre conversas que tento absorver. Me chama a atenção um casa de adolescentes que pelo visto ainda estão em fase de paquera – sei lá – próximos de mim.
Durante o percurso de 30 minutos entre uma estação e outra repetem em um diálogo 150 vezes a palavra “tipo”…

– A professora tipo assim, enrola mil vezes, tipo, a prova foi fácil, mas tipo, o tempo foi curto…
Enquanto ela comenta que:
– Tipo assim, o meu pai não pode me buscar e eu, tipo a sapatilha do balé, tipo pressiona o dedo…

Ele olha para o pé e ela meio sem jeito, diz, tipo sem graça:
– Prazer, pé de bailarina!
O olho dele brilha e ela sem graça, mexe no cabelo. Fala do prazer de dançar, depois que ele quis saber se ela gosta mesmo de balé, entre dois “tipo” no meio da frase. E ela descreve a poesia que o céu oferece lá fora, através da janela… Dançar para ela é como a magia do sol de todo dia, tipo que se a gente fica sem, morre… Ele fala do amor pelo skate, mas tipo assim, ele não tem. Usa emprestado do amigo, que é tipo meio irmão e que com o skate pode voar, igual a ela – imagina ele – tipo quando dança.

Comentam sobre o quanto de vezes repetiram o tipo e eu aviso das 150 vezes que marquei. Riem comigo, pela cumplicidade da conversa e eu digo que tipo assim, ia escrever uma carta falando sobre isso. Ele desce antes de mim e despede-se pegando o endereço do blog. Tipo assim, de curiosidade, ele verá. Ela ri e fala do prazer de dançar que deve ser tipo assim, o mesmo que eu sinto ao escrever.
Despeço-me na leveza do riso da menina que tipo assim, durante a dança, voa. E sigo rumo à noite para te escrever.

Mariana Gouveia

Das palavras das cartas · Mariana Gouveia · via lunar

Carta à Maria aos cuidados de fevereiro

Para te escrever eu cumpro um ritual de todo ano, nesse dia. Eu ajeito as lembranças uma a uma e vou celebrando você na minha vida.

Poderia dizer que é a minha inspiração desde sempre. Lembro-me de que guardava seus cadernos de poesia e desejava muito ter sido eu quem tivesse escrito.

Rastreio na memória você ainda menina – com seu uniforme de normalista – a surgir na estradinha da fazenda nas sextas- feiras e a curiosidade não me permitia dormir para ouvir suas histórias da escola.

Depois, viajo mais adiante quando você se casou e foi viver sua vida. As minhas férias, a partir daí foram com você e seu jipee verde, a vasculhar seus batons com gosto de uva, a experimentar suas roupas e calçados.

O melhor presente foi os meninos… Com eles, aprendi o amor incondicional de tia e a acolher seu olhar de mãe. A vida foi dura com você… mas ao mesmo tempo foi generosa quando te deu as meninas. Te vi corajosa diante da perda. Gigante diante da dor… e frágil diante das netas. Te vejo menina diante da vida, magnânima cuidando do pai e tão generosa com aqueles que te cercam.

Para mim, você será sempre a minha Mia… aquela menina de uniforme, com meia 3/4 e sapatos de verniz. Uma guerreira que chora mas que todo dia levanta movida pela fé. Uma artista sem igual, com a magia nas mãos a criar arte em forma de carinho.

A vida nos levou para longe uma da outra, mas estou mais perto do que imagina. Dentro dos dias na poesia que você retrata quando cria, no jeito corajoso ou medroso – de enfrentar a vida.

Na última vez que nos vimos você me levou pelas ruas do seu lugar para conhecer os ipês que douravam a cidade. Essa foto é uma das muitas que encantei de ver sob seu olhar. Ser sua irmã me torna melhor. Hoje, te desejo amor além da medida e toda felicidade que alguém pode ter.

Agradeço a maneira como cuida do nosso pai. Te amo muito mais por isso.

Que tudo de bom te aconteça sempre!
Beijo

Te amo

Mariana Gouveia

Das palavras das cartas · De todas as estações · Mariana Gouveia

Das lembranças das cartas

A previsão se corrompeu com o tempo. Havia uma nuvem de poeira dentro do vento. Solitária, a ave que trazia nas asas a lenda de agouro tinha o abismo do amanhã dentro dos olhos. Era a estação das flores misturadas dentro de outra estação. Relembrou histórias da infância. Viajou nos dias e suspirou. Era criança e ouvia a mãe contar sobre os telegramas que chegavam, logo depois que avistavam a ave no tronco de madeira da porteira, no telhado… Tudo era culpa da ave – coitada – que apenas cumpria seu destino de voar. Acontecia de que, por acaso, o aparecimento da ave se dar por ocasião dessas notícias ruins que o carteiro trazia num envelope estranho, diferente dos normais. A notícia da morte do avô veio em um desses que trazia códigos e letras e depois disso, a mãe viveu em luto por anos a fio. A perda do tio querido e o acidente que levara a vida de pessoas que ela nem conhecia – e a mãe amava – por isso se trancou no quarto e começou a maldizer a ave, que estivera pela manhã por ali. Para ela, a culpa era do carteiro que surgia na estradinha que fazia curva ao lado do rio, com sua farda amarela e azul. Pensou em escrever uma carta pedindo para que ele não trouxesse mais esses envelopes, fora das cartas que aguardava com a ansiedade de quem esperava uma vida. Hoje, lembrou -se do agouro da ave, logo quando, por fim, o ônibus e sua curva lhe fizeram ver a ave posta, solitária. O olho atento ao que nem era exato. O sangue a fluir dentro da veia.  Relembrou as estações misturadas dentro do dia. A urbanidade dos pássaros que logo pela manhã cantam no telhado das casas vizinhas e nos envelopes dos telegramas que nunca mais viu. E no olhar da menina que a fixou com o olhar de espanto e a chamou de bruxa.

Mariana Gouveia

Das palavras das cartas · De todas as estações · Diário das quatro estações · Mariana Gouveia · Scenarium Livros Artesanais

Era assim em todos os séculos que existiu

e em cada século repetido o ritual do amor.

Ph: Pinterest

Havia chegado com cheiro de maresia e trazia nas mãos o beijo do mar. Se transformou em poema contado dentro do livro. Página a página em ritmo de poesia e o coração tal qual as ondas batia. O nome feito labirinto pronunciado ao vento. Era assim em todos os séculos que existiu e em cada século repetido o ritual do amor. Escreveu quatro cartas para endereços diferentes. Falava do passado, presente e futuro. Desenhou estradas que talvez nunca passaria. Retratou a cidade com seus cheiros, suas calçadas floridas pelos ipês de várias cores. Tentou passar o perfume das ruas através das frases. Imaginou o riso e a emoção de cada um ao abrir o envelope colorido. Contou das nuvens e as manhãs de verão. Explicou os sonhos, detalhou a esperança e cumpriu o rito da promessa. Falou da menina que recusou o livro por desconfiança — afinal, o mundo anda estranho — e perdeu a vontade de oferecer de novo. Escrever não precisa de explicações.
Beijou um a um os acontecimentos e fechou o envelope.

Mariana Gouveia
Desvios para atravessar quintais
Diário das quatro Estações
Scenarium Livros Artesanais
Clica aqui para comprar meus livros

Das palavras das cartas · De todas as estações · Diário das quatro estações · Mariana Gouveia · Scenarium Livros Artesanais

E o pássaro abre a asa na intenção de voar

Descobri cartas antigas de minha mãe no baú das memórias. As letras cursivas pareciam ganhar vida agarradinhas umas nas outras. Em uma delas ela me chama pelo diminutivo do segundo nome… Parecia despedida e na época não percebi. Deu-me direção de caminhos. Orientou- me diante da vida e falou das canções que ela mais gostava.
Nas palavras, um poema sobre asas que eu fiz ainda criança… Falava do pássaro de todo dia que vivia ali, nos arredores. E do luto dela na ocasião da morte do meu avô. Tudo era um voo plano no ar:

” Era a asa do pássaro que tinha a posse…O poder do voo… o limite do céu.
Esse mesmo céu da cor do vestido de minha mãe de antes da morte do meu avô. Depois da partida dele ela se veste só de preto. Uma forma de mostrar a cor da alma. Mas de manhã, quando o sol abre a cortina do dia, o riso dela é colorido. E o pássaro abre a asa na intenção de voar”.

Depois daquele escrito lembro que minha mãe foi à porta, olhou o céu e sua dimensão de cor… entrou em seu quarto e saiu com seu vestido azul. Aprendi nesse dia o poder da palavra e do quanto era importante a escrita. Hoje, o canto de um pássaro invade o dia e junto com as palavras ganhou jeito de lembrança e cor.

Mariana Gouveia
Desvios para atravessar quintais
Diário das Quatro Estações
Scenarium Livros artesanais