Das palavras das cartas · infinitamente · Mariana Gouveia

Desenhei a sorte…

no topo da lista dos desejos – isso, anos atrás como querência de amor tranquilo – e fiz e refiz em oração a palavra amor.

Nas simpatias, nos dias dos santos, o nome surgia em forma de código e na casca da laranja, retirada inteira, sem quebrar, a letra do seu nome gerava riso entre os irmãos.

O tempo junto com o universo tratou de ouvir meus pedidos e a sorte, hoje, mora comigo e cuida de mim.

Na canção que canta para mim, fala do amor infinito. Na oração diária, a esperança de cura. No cuidado do jardim, a simbologia da primavera que me oferece em gestos.

O amor é isso e mora comigo nas noites de insônia, na mão estendida, no ombro de amparo e até no silêncio, quando as poesias me habitam.

Ter você por todos esses anos é acreditar que muito mais que o amor de homem e mulher, a amizade e cumplicidade nos faz mais fortes, mais unidos.

Te amo sempre!
Grata por tanto!

Mariana Gouveia

infinitamente · Mariana Gouveia

Quase que metade, coração

Vasculhei meu guarda-roupas atrás dos cheiros dela que ficou nas minhas roupas. As gavetas, desarrumei…Na estante o vidro de perfume com a essência me fez lembrar uma canção.

Procurei por ela nos lençóis, na fronha do travesseiro. No sabor da comida na geladeira. O vazio dela preenchia minha tarde e ela existia nas poesias que eu lia.

A cama parecia imensa, gigante sem o corpo dela ocupando espaço, ganhando abraços de mim. Nos silêncios da tarde ela se fazia presente e eu podia ter vivido mais. Podia ter pedido mais, exigido presença. E hoje, talvez, essa saudade seria amena. Ou não…

Tal qual louca eu vasculhava tudo atrás de lembranças. Revirava as dos pensamentos, das palavras ditas, dos beijos molhados, das mãos que buscavam em mim os prazeres mais intensos, mas profundos que senti.

Eu a encontrei na vastidão das horas, da voz que insistia entre o sotaque me dizer de amor. Queria buscar com a boca as palavras que falava pra dentro de si, e as que não ousou dizer. Queria matar essa fome dela, essa sede da umidade que rodeia. Na chuva que chovia em mim.

Eu a encontrei no espaço vago entre uma folha que caía quase que metade coração e compreendi a dimensão do sentia.

Metade de mim vive nela.
Metade dela vive em mim.

Mariana Gouveia

Das rotinas · Mariana Gouveia

Maria das flores

Ela tinha um jardim bonito. Desses cheios de flores variadas e ervas que tanto servem pra remédios como para temperos.

A cada 15 dias eu visitava aquele jardim e nunca era a mesma flor. E nem os mesmos pássaros e as borboletas laranjas, também não eram as mesmas. Mas ela, era. Eu a via sentada numa das cadeiras que ficava debaixo de uma árvore.

A princípio, parecia que me olhava. Cheguei a ter impressão de que sorria quando essa ou aquela borboleta escapava de mim. Mas, era impressão mesmo.

Respondia ao meu bom dia, meio tímida e não mais que isso, enquanto eu invadia quase a parte toda do quintal atrás dessa ou daquela borboleta.

Quando chegava minha hora de ir eu agradecia, dava tchau e ia rumo à vida. E ela ficava ali, no seu jardim de flores.

Mariana Gouveia

De todas as estações · Mariana Gouveia

e ainda nem era outono.

Havia chovido em uma dessas tardes mornas de fevereiro… O lírio do vento ainda trazia as gotas como se fosse souvenires e ela ali, espiando a tarde que amarelava o muro do quintal.

A solidão fazendo companhia para as flores que se transformaram em relicários das gotas da chuva – de ontem e ainda nem era outono.

Mariana Gouveia

Do lado de fora · infinitamente

Amanhã, meu amor

amanhã faço poemas com os teus dedos donde nascem flores,
amanhã escrevo-te cartas com os lábios a tremer de frio,
amanhã adormeço desperta no canto mais canto que houver da tua voz,

amanhã meu amor,
verei todas as folhas amarelas que nascem do chão e regressam aos ramos
[dos teus braços,
amanhã vou dançar no silêncio proibido que te cala,
amanhã fecho os olhos e finjo que estou acordada
para que me toques as pálpebras com a respiração ofegante de quem cega,

amanhã meu amor,
abro as janelas do peito onde nascem estrelas sem céu,
abro a cama e procuro-te debaixo dela,
dou-te a mão para me encontrares no mapa da pele dolorida,
para que me encontres talvez no mesmo sítio de sempre onde nunca foste,

amanhã meu amor,
dedico-te o vento que roça as estátuas já esverdeadas da tua cidade,
faço-te promessas de palavras que não existem,
desafio-te para um duelo de um só combatente,
deixo-te sozinho comigo encostada aos teus ombros de lava,

amanhã meu amor,
vou cantar canções na rádio da frequência 0.00,
vou atirar-te areia com os pés no meio de lugar nenhum,
devolvo-te as minhas ideias que nunca ouviste porque não sei dizê-las com
[boca nem mão,

amanhã meu amor,
vou gostar de ti como se fosses uma manga doce,
vou ter medo das paredes intactas do teu ser,
vou gritar às raízes das árvores por não as ser ,
vou girar à volta do mundo sem sequer o saber,

amanhã meu amor,
vou desenhar a lápis de cera como as crianças,
dar-te um desenho de que me vou esquecer,
amadurecer à tua espera, à espera de me ver em ti,

amanhã meu amor,
vou fazer malabarismo com o tempo,
desprender-te da liberdade, da minha liberdade,
aconchegar-te à noite sem saberes,

só porque amanhã meu amor,
amanhã,
vou continuar a gostar de Ti.

Raquel Lacerda
in «Os dias do Amor»

dos diários · Mariana Gouveia

em cada fresta da noite eu só queria a pulsação do sol.

A noite ainda não tinha rompido a renda salmão das cortinas e você já era saudade.
Quando te falei das estações do tempo e da tranquilidade que sentia, não sabia que uma noite demoraria uma vida – em pouco tempo – e que os dias em que você surgia, a manhã possuía o sagrado do amor. Na época levei-te pela mão rumo ao prazer. Minha voz deu vez à mesma pergunta, e cadê? – chamam-lhe saudade… alguém disse. E houve dias em que endoideci no quintal. Busquei a palavra “volta” nas cartas, no horóscopo, no relicário – até rezei – e cantei as músicas que nem eram nossas, mas que falavam de amor. Havia a mensagem que eu não apagara e li e reli a noite inteira na sobreposição do dissolvido desejo e nas palavras doces que inventamos.  Eu só pensava no teu encanto pela flor. Girava a vida em torno do sol. Foi quando converti os silêncios e ouvi, gritantemente, a pulsação do sol… em cada fresta da noite eu só queria a pulsação do sol.

Mariana Gouveia

Das rotinas · Mariana Gouveia

Dos rituais das águas

Havia chuva no olhar distante.
Caía o dia em forma de gotas. As asas guardam pérolas de diamante.
As notícias salvam crianças que nasceram. Via um voo dentro das umidades todas.

Cabia canções no universo da água que sabia ser.
A cor exala nas folhas.
É a vida cobrando passagem diante da dor. A magia se faz de instantes.

Mariana Gouveia
dos Rituais das águas

Das rotinas · Mariana Gouveia

Dos rituais do amor


Ouvia a história de amor do homem do carro vermelho e chorou com ele suas dores de amor.
A tristeza sombreou o dia debaixo do pé de ipê, que floriu sem ser época nem nada.
Flor temporã – disse ele declamando poesia e falando que iria cruzar o mundo em nome desse amor. A natureza calou o riso dele quando ela se foi. Pediu para decifrar a sorte do dia dentro do horóscopo dele. A linha da mão falava em continuidade. Era assim que acontecia dentro dos romances do dia.

Mariana Gouveia
Dos rituais do amor

Divã · Mariana Gouveia

Ecoa

Ph: Savannah Daras

Ecoa.
Era quase vento sem ter asa.
Era quase pele sem ter poro.
Às vezes, é preciso vento.
Um poeta completa anos e eu, mesa.
Ela, cama…
Libélula na boca em asa
e gozo.

O vento mora aqui
e a maresia invade as cortinas.
Ganha rumo na risada dela.

Quebra regras,
cita nomes.
Me desenha em círculos
e daí eu sou só poema na palavra dela.

Relembra o dia
em memórias todas.
Canto ela nas nuvens
Pego ela no ar.
Respiro a leveza no encanto dela.
Depois disso, prazer é meu nome

Mariana Gouveia
Divã

Divã · Mariana Gouveia

Kandinsky e Matisse

Ela trocou o quadro de Kandinsky de parede. Agora fica atrás do sofá, então não posso ficar olhando para ele como antes. Em compensação Matisse me encara por dez longos minutos antes de entrar.

– Parece que faz zum século que não venho aqui. Mudou tudo. – falo comigo mesma, mas ela escuta.
– A cor já estava desbotada e fiz algumas mudanças na entrada. Não gosta de mudanças? – ela pergunta.
Respondo que algumas mudanças me atravessam e meus olhos fitam a janela, Reparo que a cortina não é a mesma – a sóbria de sempre – e que o sol entra por uma fresta.

– Matisse? – aponto o quadro na parede lateral, onde antes havia um vaso grande com uma folhagem estranha que não está mais lá em canto algum.
– Você entende de arte? ela me pergunta com atenção voltada para as anotações.
– Que nada! Conheço algumas, mas notei Matisse e Kandisnky na sala. “Um único tom não é nada em termos de cor; dois tons são um acorde, são a vida.” – falo quase em sussurro.
– Oi?
– Frase de Matisse – digo – e a pintura me lembrou dela. Gosto das cores. É isso. gosto das cores.

Ela anota e eu suspiro. A cortina balança, um vento atravessa a janela semiaberta. Falo do tempo, das coisas que penso, de como o mês ganha velocidade das horas e do azul cobalto da parede da frente.
– Dá para criar poesia hoje? – ela pergunta com um sorriso terno…
– Acho que consigo falar sobre o azul cobalto e das cores.
Ela ri enquanto me levanto e vou… com a frase de Matisse na cabeça e o azul cobalto na inspiração.

Mariana Gouveia
Divã