Divã · dos diários · Mariana Gouveia

Tenho um dragão que come na minha mão.

O dia rompe as rotinas do nada. Era hora de espionar segredos. Na rota dos olhos, o espelho. Denuncia o cansaço de não dormir.
Ela anota. Eu anoto. Rasgo palavras que havia escrito. Uma espécie de silêncio no ar. Tão gritante e ao mesmo tempo, ensurdecedor.
Ando até a janela. O horizonte mostra a ilusão que vivi.
As frases ecoam na cabeça. Divagações do que poderia ter sido diferente e de como ainda brinca quando fecha etapas.
Escrevo o nome dela na janela do agora. Quase grito, quase chamo. Calo.
Ela anota. Eu apago. Rasuro. Sublinho. Acho bonito um nome sublinhado.
Desenho um coração junto. A neblina de fora oferece a opção da escrita.
Um homem pinta um portão de verde. Uma joaninha cai na lata de tinta. Eu a salvei antes que a tinta marcasse as asas.
Ela me olha. Espia os sentimentos que me atinge.
Falo de coisas surreais. Tatuei o nome dela no meu peito. Tenho um amigo imaginário que conversa comigo. Me diz que se chama Tempo e que a melhor escolha da vida, é viver. É um dragão que vive na minha mão. Sublinho a palavra tatuei. Ela ri.
Lembro do riso dela. Lembro de tanta coisa que fizemos juntas.
– Segura ele. Nunca vi um dragão.
– Ele é inofensivo. Só vive no meu imaginário.
Ela anota.
Fala da boneca de milho que era amiga dela quando era menina.
Penso na rapidez das horas. Ela olha o relógio na parede.
Confirma o diagnóstico: Falta de lucidez.
Coloca um comprimido vermelho na minha mão. Meu dragão come.

Mariana Gouveia – Divã
Das fragilidades secretas

Divã · Mariana Gouveia

Ecoa

Ph: Savannah Daras

Ecoa.
Era quase vento sem ter asa.
Era quase pele sem ter poro.
Às vezes, é preciso vento.
Um poeta completa anos e eu, mesa.
Ela, cama…
Libélula na boca em asa
e gozo.

O vento mora aqui
e a maresia invade as cortinas.
Ganha rumo na risada dela.

Quebra regras,
cita nomes.
Me desenha em círculos
e daí eu sou só poema na palavra dela.

Relembra o dia
em memórias todas.
Canto ela nas nuvens
Pego ela no ar.
Respiro a leveza no encanto dela.
Depois disso, prazer é meu nome

Mariana Gouveia
Divã

Divã · Mariana Gouveia

Kandinsky e Matisse

Ela trocou o quadro de Kandinsky de parede. Agora fica atrás do sofá, então não posso ficar olhando para ele como antes. Em compensação Matisse me encara por dez longos minutos antes de entrar.

– Parece que faz zum século que não venho aqui. Mudou tudo. – falo comigo mesma, mas ela escuta.
– A cor já estava desbotada e fiz algumas mudanças na entrada. Não gosta de mudanças? – ela pergunta.
Respondo que algumas mudanças me atravessam e meus olhos fitam a janela, Reparo que a cortina não é a mesma – a sóbria de sempre – e que o sol entra por uma fresta.

– Matisse? – aponto o quadro na parede lateral, onde antes havia um vaso grande com uma folhagem estranha que não está mais lá em canto algum.
– Você entende de arte? ela me pergunta com atenção voltada para as anotações.
– Que nada! Conheço algumas, mas notei Matisse e Kandisnky na sala. “Um único tom não é nada em termos de cor; dois tons são um acorde, são a vida.” – falo quase em sussurro.
– Oi?
– Frase de Matisse – digo – e a pintura me lembrou dela. Gosto das cores. É isso. gosto das cores.

Ela anota e eu suspiro. A cortina balança, um vento atravessa a janela semiaberta. Falo do tempo, das coisas que penso, de como o mês ganha velocidade das horas e do azul cobalto da parede da frente.
– Dá para criar poesia hoje? – ela pergunta com um sorriso terno…
– Acho que consigo falar sobre o azul cobalto e das cores.
Ela ri enquanto me levanto e vou… com a frase de Matisse na cabeça e o azul cobalto na inspiração.

Mariana Gouveia
Divã

Divã · do verbo voar · Mariana Gouveia

Às vezes, é preciso enfrentar o imaginário.

Ph: Omerika

Ela senta. Anota.
– Sugiro que fale mais sobre isso.
Disparo a falar sobre possibilidades de espera.
O mundo é um lugar comum. Dispensa atenuantes de comparação.
O sonho de conquistar o mundo cabe em um abraço.
Meninos espreitam a solidão, enquanto espanto pássaros no jardim.
Levo eles para o céu. É a estação que sopra em direção do voo.
Coisa de menina dentro da estação..
Despeço do homem na porta da esquina.
Lembro do corpo dela dentro de mim.
Lembro dela dentro de mim.
Eu. Dentro dela.
A pele com cheiro da maresia. Ela todo mar. Direção da minha nau. Ela, meu porto.
Divago sobre vento. Falo da alusão ao que minha mãe dizia:
– Vento é o Espírito Santo. Assovie e ele virá.
Faço isso só pra demonstrar. Uma brisa suave mexe o cabelo dela. Anota.
Imagino roubar as anotações dela.
Ela me pergunta sobre o que penso do imaginário – suspiro –
– voos…
– Pássaros?
– Asas. Liberdade. O voo não é solúvel no ar. De toda queda. Só às vezes, eu quero o chão. Há dez maneiras do imaginário agir.
-Liberdade?
– De dançar, voar, pousar…
Empurra os pássaros com a mão.
Ela anota. Pega na minha mão. Olha na direção da janela.
– Me mostra.
E começa a falar de ninhos.

Mariana Gouveia
– Divã

Divã · do verbo voar · Mariana Gouveia

Às vezes, é preciso enfrentar a verdade…

Ph: Amanda Mason

Aquela que dói no peito e bate na porta avisando: não tem jeito.
Eu anoto.
Não antecipei o contexto. Apenas repeti. E previ.
Era outono nas manhãs do nada. Um pássaro morre no meu quintal. Tento fazer a simpatia que minha mãe fazia quando eu era criança. Coloco o pescoço do pássaro em volta dele mesmo. Molho a cabeça dele e depois o coloco debaixo de um balde. Dou as três batidas e mais três. Já não tem vida ali.
Já não há voos na minha manhã sombria. Pensei que seria véspera de asas. Acabou.
– Tem dificuldades em lidar com o que acaba?
– Não! Sou áspera na palavra respirar. Acato. Aceito. Sou submissa na atenção dos dias. O fim é sempre uma porta para um novo começo.
– Mas?
– É a reconstrução de um tecido que já foi rasgado. Ditados populares de séculos – Não deite remendo novo em pano velho – e por aí, vai. Diante da verdade possível fica um vão de medo. Planejei o dia de hoje em uma conversa simples, limpa, feliz e pensei nisto com o coração, lembrei de todas as conversas que quis ter, cafés, sorvetes, sombras e varais repletos de palavras e libélulas penduradas na palavra acariciar.
– E não aconteceu?
– Não. Tive de lidar com a morte logo cedo.
Seria possível remendar sonhos?
Anoto eu mesma a minha resposta.
A verdade é que às vezes, é preciso enfrentar a verdade.
Há um pássaro vazio de voo na minha mão.
Hoje, ela não fala…

Mariana Gouveia
– Divã

Divã

Sem licença

Sem licença

Uma artista não morre! Ela vive para sempre dentro da arte que representa.
Vá em paz, Nélida!
Eu te tomo nos braços, sou tão ansiosa, tão perdida na própria paixão.
Tu brincas comigo, dizes que não tomo jeito, mas tu estás povoado de orgulho do mesmo modo como te povoo de lendas. Eu te enfeito com histórias que ninguém, senão eu, li em ti.
Tu sabes o poema que farei amanhã, a palavra que perderei no futuro se me escapas agora.
Não te autorizo a deixar-me. Ouviste o que eu disse?
Não te dou licença de passear pela terra, de ter um futuro em que eu não esteja inteira.

Nélida Piñon
*imagem: Tumblr

Das rotinas · infinitamente · Mariana Gouveia

Das infinitudes

O dia parece aquelas fotos antigas penduradas na parede. A família toda reunida em volta da mesa, e o retrato ali, lembrando os ausentes. Contando histórias de antes. O vento a dançar com as cortinas e os risos fáceis das crianças na rua.

Ainda era ontem e a felicidade estampada nos jornais. As palavras cruzadas rabiscadas nas folhas e o disco de vinil cantando a canção. Era assim antigamente…

– Não era aquela canção que a mãe gostava?

O sapato de verniz voltou à moda de novo e outra vez o rosa millenium é a cor da estação.

Releu para todos o horóscopo do jornal.

A moça do tempo refez as previsões da semana. O cheiro de pão da padaria faz lembrar quantos blocos a calçada tem até lá. A árvore favorita da rua de cima floresceu de novo. Alguém disse que havia magia naquela árvore desde tempos atrás. O café feito da maneira antiga e de novo as lembranças de outro tempo no álbum de retratos. O riso, ali, na face da criança que nem parecia ela…

A garrafa de leite que era da mãe, a panela de barro, a música e a saudade a ecoar palavras de sorte. Colocou o vestido que usava só para os dias de festa. A vida, às vezes, parece detalhe de livro.

Mariana Gouveia

infinitamente · Mariana Gouveia

As flores miúdas acontecem no quintal.

Havia rumores de lendas dentro da história que alguém me contou.
Li sobre esperança em algum lugar enquanto as sementes germinaram no doce desafio de viver.

O vento tentou morar na mão e saiu desatinado dançando com as coisas que encontrava pelo caminho.

A estação marca presença nos dias e outubro se esvai em conta gotas na imensidão das horas.

A sorte passou por aqui e pediu para avisar que ainda, apesar de tudo, é tempo de sonhar.

Mariana Gouveia

Divã · infinitamente · Mariana Gouveia

Tem jeito de anjo, a moça

mas passou a ser indecente
olhar perdido nas nuvens
Resolve ser na mão de alguém

Vivendo doces mentiras do dia,
na noite se fantasia com asas
e pensa em salvar o final feliz da história.

Enclausurada, lá pela meia noite tira a roupa
Traz sempre um cheiro de rosas
(anjo cheira a nuvens – eu acho)

exala amor novo
Sabe ser quente
sabe ser porto – ela diz

e no conto de areia de água doce disfarçada de mar
quer um final feliz.
Satisfazendo os desejos dela dou-lhe o céu e fim

Mariana Gouveia
*imagem: Kamil Vojnar

azul em qualquer céu. · Divã · Mariana Gouveia

Ela é sóbria

Não tem moedas para pagar o preço de ser livre.
Cruza pontes estreitíssimas e ri.
Adoro a estrela que se insinua em seu riso.
Corteja os azuis em um tempo manso.

Tem vontade de voltar para casa,
se bem que a casa dela é em qualquer lugar.
Brinca com as correntes que não fez. Eu rio.

Ora para que o plano A dê certo,
e no C cruza os dedos.

A vida sorri para ela.
Às vezes, ironicamente.
Mas ri quando no pote de feijão encontra sorvete… e amor.

Plena e indizivelmente batiza seus silêncios.
Tem álibi, atreve-se. Ama.
Sempre se deixa enternecer pelo que a alcança.
Talvez, por isso, as pedras não sejam pedras, mas flores.

E tudo que desejo é que o amor há de encontrá-la
desatenta e assim, entre as palavras e o sorriso ela seja feliz.

Mariana Gouveia.
*imagem: Tumblr