Se eu pudesse escolher, gostaria de me transformar numa música,
porque além de bonita ela desaparece.
Sumir por um tempo deve ser o máximo.
Luciane Recieri
Bambina mia,
Recebi sua missiva numa manhã seca, já com nuances de queimada em meu lugar. Diferente de você, eu aconteço nas manhãs e sigo rituais que meu corpo já acostumou viver. Coar o café, aguar as plantas, falar com os cães e pássaros, olhar o céu e sua infinidade de cores matinais e ouvir músicas… e daí me componho diante das horas…
Lendo sua missiva me vi durante horas no seu questionamento – quanta espera realizamos durante um dia inteiro? – e pensei nos caminhos invisíveis que cruzamos. No meu último encontro com meu pai falamos sobre o sentido das horas… ele disse que chega um tempo em que as horas não fazem mais sentido e que o sentido do tempo fica registrado no olho. Pensei em você e contei para ele como você “fazia” meus livros. O olho dele lacrimejou e um riso se desenhou dentro dele. Algumas pessoas são destinadas para nossas vidas – ele falou – e fiquei pensando nisso. E de como algumas coisas são comuns entre nós. Como os chás.
O chá ocupa minhas tardes, você sabe… Nas manhãs, eu sou cafeína e nas tardes sigo o ritual dos chás… Aprendi lá na infância com meu pai e tenho minhas ervas plantadas aqui, no quintal. Colho ora o alecrim, ora o hortelã, e outras ervas que tenho aqui… e também escolho a xícara. Sou apaixonada por xícaras e tenho uma preferida… Por falar em xícaras, queria te contar que meu pai ainda tem as xícaras esmaltadas em uma caixa de chapéu e fazendo a limpeza de algumas coisas, encontrei a minha – essa da foto que ilustra a carta – já gasta pelos anos e as mudanças.
Você sabe quantas coisas cabem dentro de uma simples xícara de chá? Sua pergunta fez meu cuore saltar… eu poderia te responder essa pergunta com todas as memórias que o olho do meu pai desenhou. Nessa xícara com florzinhas amarelas, eu bebi leite tirado na hora, dentro do curral, café com bolo de queijo, na beira do fogão de lenha e chás de erva-doce para aliviar a febre. Ela foi companheira de uma vida toda e estava guardada com ele, como se fosse um tesouro.
Embora meu pai ame café, ele foi feito de rituais de chás. Daria um livro as histórias que ele conta sobre chás. Já te contei que na casa dele tem um pé de canela? Dessa vez, não tive sorte. As folhas ainda estavam verdes e não havia nenhum pau pronto para colher. Ai de mim se arranco qualquer folha sem o consentimento dele! Esse pé de canela é um santuário para ele e foi ali, na sombra dele que nossos abraços aconteceram na despedida. Parece que foi ontem e já fazem 7 dias.
O tempo e sua velocidade além de nós… O tempo e essa ligeireza das horas. Lembro-me que você me perguntou se eu já havia chegado de viagem… eu ainda tenho o olho do meu pai na alma. Acho que possuo a doença dos espaços imensuráveis, bambina. Cada vez que volto, fica um pouco de mim no choro de minha irmã, na benção do meu pai e em cada imagem que registro ao longo dos dias.
A tarde avança… é quase noite… uma canção ecoa aqui e o chá esfria na xícara. Aceitei seu convite brindando o ano 10 de Catarina.
Bacio,
Mariana Gouveia
*Último post do projeto 52 – 52 cartas escritas no último domingo de cada mês, durante um ano –
Scenarium Livros Artesanais
Participam desse projeto
Lunna Guedes – Obdúlio Nunes Ortega