Das palavras das cartas · Projeto52 · Scenarium Livros Artesanais

Possuo a doença dos espaços incomensuráveis.

Se eu pudesse escolher, gostaria de me transformar numa música,
porque além de bonita ela desaparece.
Sumir por um tempo deve ser o máximo.

Luciane Recieri

Bambina mia,

Recebi sua missiva numa manhã seca, já com nuances de queimada em meu lugar. Diferente de você, eu aconteço nas manhãs e sigo rituais que meu corpo já acostumou viver. Coar o café, aguar as plantas, falar com os cães e pássaros, olhar o céu e sua infinidade de cores matinais e ouvir músicas… e daí me componho diante das horas…

Lendo sua missiva me vi durante horas no seu questionamento – quanta espera realizamos durante um dia inteiro? – e pensei nos caminhos invisíveis que cruzamos. No meu último encontro com meu pai falamos sobre o sentido das horas… ele disse que chega um tempo em que as horas não fazem mais sentido e que o sentido do tempo fica registrado no olho. Pensei em você e contei para ele como você “fazia” meus livros. O olho dele lacrimejou e um riso se desenhou dentro dele. Algumas pessoas são destinadas para nossas vidas – ele falou – e fiquei pensando nisso. E de como algumas coisas são comuns entre nós. Como os chás.

O chá ocupa minhas tardes, você sabe… Nas manhãs, eu sou cafeína e nas tardes sigo o ritual dos chás… Aprendi lá na infância com meu pai e tenho minhas ervas plantadas aqui, no quintal. Colho ora o alecrim, ora o hortelã, e outras ervas que tenho aqui… e também escolho a xícara. Sou apaixonada por xícaras e tenho uma preferida… Por falar em xícaras, queria te contar que meu pai ainda tem as xícaras esmaltadas em uma caixa de chapéu e fazendo a limpeza de algumas coisas, encontrei a minha – essa da foto que ilustra a carta – já gasta pelos anos e as mudanças.

Você sabe quantas coisas cabem dentro de uma simples xícara de chá?  Sua pergunta fez meu cuore saltar… eu poderia te responder essa pergunta com todas as memórias que o olho do meu pai desenhou. Nessa xícara com florzinhas amarelas, eu bebi leite tirado na hora, dentro do curral, café com bolo de queijo, na beira do fogão de lenha e chás de erva-doce para aliviar a febre. Ela foi companheira de uma vida toda e estava guardada com ele, como se fosse um tesouro.

Embora meu pai ame café, ele foi feito de rituais de chás. Daria um livro as histórias que ele conta sobre chás. Já te contei que na casa dele tem um pé de canela? Dessa vez, não tive sorte. As folhas ainda estavam verdes e não havia nenhum pau pronto para colher. Ai de mim se arranco qualquer folha sem o consentimento dele! Esse pé de canela é um santuário para ele e foi ali, na sombra dele que nossos abraços aconteceram na despedida. Parece que foi ontem e já fazem 7 dias.

O tempo e sua velocidade além de nós… O tempo e essa ligeireza das horas. Lembro-me que você me perguntou se eu já havia chegado de viagem… eu ainda tenho o olho do meu pai na alma. Acho que possuo a doença dos espaços imensuráveis, bambina. Cada vez que volto, fica um pouco de mim no choro de minha irmã, na benção do meu pai e em cada imagem que registro ao longo dos dias.

A tarde avança… é quase noite… uma canção ecoa aqui e o chá esfria na xícara. Aceitei seu convite brindando o ano 10 de Catarina.

Bacio,
Mariana Gouveia
*Último post do projeto 52 – 52 cartas escritas no último domingo de cada mês, durante um ano –
Scenarium Livros Artesanais
Participam desse projeto
Lunna Guedes Obdúlio Nunes Ortega

Projeto52 · Scenarium Livros Artesanais

Duas pessoas sentam-se à mesa.

Marcelo querido,

Eu poderia começar essa carta da mesma maneira que comecei naquele caderno que te dei – lembra? – contando o que aconteceu de mais importante no ano em que você nasceu até chegar o dia de hoje… mas naquele ano, o fato mais importante foi mesmo seu nascimento. Então, vou falar de outras coisas.

Duas pessoas sentam-se à mesa e ali, durante quatro horas usam o microfone para levar informações e entretenimento para quem está do outro lado do rádio. Ainda tenho na memória algumas frases, alguns nomes ditos com a zueira de Ronaldinho Gente Fina e suas mensagens. Poderia repetir algumas, hoje já conhecidas por tantos. Foi ali que eu o encontrei… Você ainda quase um menino e através de uma mensagem sua mão me tirou de um fundo do poço… Depois disso, eu apenas continuei gostando de você.

Passei a ser sua amiga e isso me honra muito. Passei a fazer parte de sua vida através de sua mãe e como eu já disse acho que foi o destino que te trouxe até mim através de um MHz… Quando você ganhou asas e voou além do rádio sua falta foi suprimida pela nossa bandida. Todos os sábados, eu atravessava a ponte e passava o dia com ela. Era quando eu sabia de você e de como a vida te guiava nos caminhos.

Semana passada, revirando meu baú de fotos encontrei uma foto nossa, tirada na rádio, próxima da mesa que nos ligou. Lembrei-me de uma pergunta que sua mãe fez uma vez: por que eu gostava de você? Lembro-me de que na época falei sobre o sentimento de gratidão e ela disse que gostar era relativo. Talvez você não compartilhasse desse gostar.

Tempos depois, ela te trouxe à minha casa. Era uma visita inesperada. Você era apenas meu ídolo e estava ali, no sofá da minha sala, conversando com meu marido sobre futebol… sua voz que havia me acompanhado em tantos momentos ecoava no meu quintal. Naquele dia, eu amei ainda mais a sua mãe. No sábado seguinte, ela repetiu a pergunta… nesse dia eu soube explicar: gostar de você é simples. Qualquer pessoa que te conheça sabe do que falo. Gostar não tem justificativa e nem explicação.

Se eu fosse contar os anos de você na minha vida contaria os 23 anos desde então… mesmo que a gente fique sem falar por um tempo, quando te chamo, é como se estivesse sempre ali. Me emociono saber que você é o elo que me liga com sua família.

No seu dia, os meus pensamentos te acolhe com carinho. Te desejo todas as bênçãos do mundo e vou estar sempre aqui, se precisar.


Feliz Aniversário!
Beijo meu,

Mariana Gouveia
Projeto 52
Scenarium Livros Artesanais

* Você pode acompanhar a voz de Marcelo Venturin aqui
Confira a programação.

Mariana Gouveia · Projeto52

Um tempo para anoitecer à luz de lâmpadas…

A vida, ela mesma, nos empurra para que continue sendo.
Luciane Ricieri

Luci,

Eu queria nesse fim de tarde – quase noite – sair com você, pelas suas ruas, de mãos dadas e te oferecer meu silêncio. Confesso que antes da carta iniciar andei pelo meu quintal… arranquei algumas ervas para um chá, tirei as folhas secas que caíram. Também brinquei com Chiquinho que voava atrás de mim. Só depois, me sentei aqui vendo o sol se esconder e a noite começa a pedir para acender as lâmpadas.

Falei baixinho com você pensando em sua frase acima sobre a vida e é isso mesmo, Luci… A vida, ela mesma, nos empurra para continuar sendo. É sempre um dia atrás do outro. Lembra-se de quando seu pai se recusava a comer? Nunca esqueci disso. Naquele tempo doía e parecia que ia doer para sempre e hoje, ele te acolhe em sua dor de falta. Nesse meio tempo, já aconteceu tanta coisa ruim e tanta coisa boa que a gente sente apenas o alívio de que tudo passa. Até as dores.

Lembro-me que pouco dias antes de minha mãe morrer ela me disse que “a gente se apega muito a presença física e esquece que algumas presenças invisíveis são mais fortes. Nós é que não escutamos os sinais.” Na época, eu nem pensei muito nessa frase. Só fui deparar-me com ela em um caderno antigo tempos depois dela ter partido. E comecei a sentir a presença dela mais forte em coisas que eu fazia. em coisas que em tantas solidões era como se o travesseiro fosse o colo dela.

Hoje, sei que algum canto de sua casa está vazia da presença física de Teté Binoit… mas, se reparar bem, haverá sempre resquícios dele por aí… e assim a vida segue para além do que somos. Sabe, Luci, eu só quero agradecer por me permitir dividir com você e os seus esses instantes de singeleza da sua vida e até mesmo os momentos de perdas.

Aprendo muito com você a ver a beleza das coisas. Aprendo com sua coragem, com a delicadeza com que trata esses momentos, mesmo nos apontamentos dos dias mais tristes. Sei que foram poucas coisas que você se acostumou na vida. Sei também que não se acostumará com a tristeza e que logo tudo será apenas lembrança, afinal, as cores te rodeiam e por enquanto te abraço. Estou também aprendendo a rezar seus silêncios. O ontem será sempre figurativo, Luci… A vida é hoje – minha mãe diria, se estivesse aqui – porque a gente só pode medir 15 anos de amor e doação contando os dias como a vida toda mesmo.

Te amo!
Abraço carinhoso,


Mariana Gouveia
Carta parte do Projeto 52 Missivas
É abril e é mês de b.e.d.a – blog every day april
Lunna Guedes – Obdúlio Nunes Ortega –  Ale Helga – Mãe Literatura 

só porque quero te dar um abraço

Projeto52

São dias de olhar pelo buraco da fechadura.

o meu amor ensinou-me a chegar
sedento de ternura
sarou as minhas feridas
e pôs-me a salvo para além da loucura

Jorge Palma

Amor,

Esse ano, escrevo para você na véspera porque as datas vão se posicionando no calendário, na previsão e nos baús e amanhã o dia já pede urgência por aqui… Hoje, como em outros anos, relembro o dia marcado como nosso – o 28 de março – em já são 35 anos assim.

É uma vida inteira – alguém diria – e realmente, somando todas as expectativas os 35 anos contam a história de nossas vidas. O nosso quintal antecipa também a data e os voos e pousos de borboletas que tanto me encantam chega até você. Como se a natureza e o universo nos oferecesse de presente o instante.

Os dias que vivemos, olhados pelo buraco da fechadura teve como principio o amor, uma pitada de cumplicidade e amizade. Sempre nos perguntam sobre o segredo de tanto tempo juntos em uma época tão difícil e a gente sempre diz: gostamos de estar juntos um com o outro. De rir, de falar de futebol, de ver filmes, de olhar o céu, de caminhar pela natureza… gostamos muito da companhia um do outro e isso nos fez/faz mais forte em momentos difíceis.

A gente sabe que nem tudo foi flores nessa jornada mas sabemos que se somarmos os dias dentro desses 35 anos o nosso jardim foi criado, as sementes semeadas e colhemos muitos frutos e flores. Eu te amo além da medida… você me aceita com toda a liberdade que sinto e sei que sou amada nos gestos que trocamos… Permite os meus voos, apoia os meus sonhos e me faz feliz.

E assim quero viver até o fim dos meus dias com você!

Mariana Gouveia
Projeto 52
Scenarium Livros Artesanais
Participam desse projeto: Lunna GuedesObdúlio Nunes Ortega

Mariana Gouveia · Projeto52 · Scenarium Livros Artesanais

Em longas frases, digo coisas particulares, de nós dois…

R,

Dizem que não existe futuro para quem não sabe o próprio passado… e eu sei bem do meu passado e está escrito nas páginas antigas de meus cadernos de poesia que você era meu primeiro amor. Digo era, porque essa é uma lembrança viva e não quer dizer que não te amo mais, mas que eu te amei da forma mais doce que alguém ama na primeira vez.

Te escrevo hoje, porque é seu dia e em todos os anos, nesse dia, sempre me lembrei de você e seu nome ecoava em meu coração como o bater das asas das aves e em longas frases, digo coisas particulares de nós dois e que ninguém mais sabe. Lembra-se de que foi você quem me explicou a mudança das estações?

Da primavera ao verão
Do verão ao outono
E do outono ao inverno
Você sabe quando a estação muda?
sabe exatamente quando o inverno acaba e a primavera começa?

Sua frase ecoa sempre quando alguma palavra me lembra você… ou quando o dente de leão espalha por aqui suas folhinhas como se deixasse uma mensagem dentro da estação em que me perdi de você. A gente era igual e a magia que nos rodeava foi a mesma que nos separou.

Não sei se fui eu ou você quem partiu primeiro… Porque quem parte em silêncio, não grita aos sete ventos que vai embora… de um dia para o outro eu estava em outro lugar e você já não vinha a algum tempo… De repente seu nome foi virando uma doce lembrança e apenas a data de hoje era dedicada a pensar em você.

Eu me lembrava de seu riso, do seu jeito de cavalgar, a maneira de espantar as aves na árvore da frente de casa e do modo que assoviava… Fevereiro era o mês que essa data me trazia você e o mais estranho é que eu nem sabia porquê.

Te reencontrei dias atrás e a leveza do momento me fez sentir gratidão de tudo que vivemos juntos. Você foi a magia que transformou minha adolescência em emoções e você foi o primeiro amor que fez meu coração bater… Mas, a gente se perdeu no caminho e faz parte se perder ou desviar da rota e sempre que  isso acontece a vida nos leva a caminhos interessantes e foi assim que te vi de novo.

Que teus dias sejam feitos de voos intensos e felizes e que a cada curva dessa estrada que você cruza você encontre motivos para sorrir.

Beijo,


Mariana Gouveia
Projeto 52 Missivas
Scenarium Livros Artesanais
Lunna Guedes Obdúlio Nunes Ortega

Mariana Gouveia · Projeto52

Eu me lembrei de você, em mim

Ana,

Abri as gavetas hoje e fazia tempo que eu não tocava em suas coisas…  A cômoda ficava sempre ali, no canto, muda e eu ignorava o chamamento dela…

Confesso que, vez ou outra alguma fragrância escapava dali e me trazia a memória lembranças suas… mas, hoje, talvez por causa de fotos que recebi do meu livro passeando pelas ruas de Paris achei que devia vasculhar alguns momentos e tocar nas coisas que você tocou e eu me lembrei de você em mim.

Já faz tanto tempo e as coisas continuam tão iguais… nem os envelopes amarelaram e a camiseta com dizeres em inglês e que eu esqueci a tradução ainda tem o cheiro do amaciante como se tivesse sido lavada ontem.

Os papéis de bala – por que a gente guardou isso? – e os palitos de picolé estão intactos e pensando em uma faxina joguei no saco de lixo para pegar logo depois e devolvê-los para o saquinho de pano que bordei.

Em alguns dias, durante esses anos todos houve dias em que cheguei a te esquecer e a cômoda nem era incômodo no canto do quarto… O quadrinho com o poema de Ana Hatherly que você gostava: “há uma benção divina no esquecimento” me tocou como se fosse sua mão… e tem dias que lembrar é um sopro na alma, como hoje. Eu poderia escrever mil cartas só hoje contando coisas do dia a dia, mas imagino você subversiva mudando esse infinito todo com os pés na lua e a cabeça em Marte e é assim que me lembro de você…

Por fim, guardo tudo no lugar e devolvo o saco de lixo vazio no porta-saco e canto baixinho a canção que você gostava e vou ali, viver a vida.

Non, rien de rien
Non, je ne regrette rien
Ni le bien, qu’on m’a fait
Ni le mal, tout ça m’est bien égal

Beijo meu

Mariana Gouveia
Projeto 52 Missivas
Scenarium Livros Artesanais
Participam desse projeto:
Obdúlio Nunes OrtegaLunna Guedes

Mariana Gouveia · Projeto52

A morte pulsa nas veias da existência e ata minha vida ao pulsar dos segundos.

Querida Sandra,

” (…) estar ao abrigo do fim do amor,
é a isso que eu chamo felicidade.”

Marguerite Duras

Hoje, eu quero falar com você… nem sei se sobre mim, se sobre dor, perdas e morte… mas, quero falar com você, com minhas palavras que te abraçam para além das imagens.

Devo dizer que senti uma certa inveja de sua dor… você perdeu uma referência feminina muito grande – nem sei bem se o termo é perder , porque a referência que ela te deixou está aí, latente e viva em você. Tão forte e tão sensível.

Eu sempre fui rodeada de mulheres fortes, valorosas… mulheres que de alguma forma foram faróis no meu caminhar, mas não tenho referências de minha avó materna. Para mim, ela era aquele desejo mais profundo, de busca de colo e aconchego… mas, não vivi isso. Cheguei mais perto disso com minha Bá – dona Fulô – a parteira que me trouxe ao mundo. Só que a avó – mãe de minha mãe – que conheci através das palavras dela surgiu diferente diante de meus olhos, já nos meus dezessete anos.

Ela era perfumada… coque bem feito com seus cabelos compridos e indiferente ao meu olhar de neta. Quando minha mãe se foi, dias depois, o que era indiferença se transformou em ignorância. Ela nos ignorava. Talvez, essa seja a pergunta que mais me acompanhou durante tantos anos – hoje, não mais: porquê? A casa dela ficava a três quadras da nossa, na mesma rua… E entendo que por termos morado longe dela boa parte dos anos, a intimidade não foi construída e juro que tentei… depois de um ano e pouco, desisti. Não pedi mais a mão para meu luto, nem colo, nem abraço. Passei a ignorar e foi assim que me libertei da vontade de viver ela.

Ela também já se foi há alguns anos e lembro-me que o sentimento que senti ao despedir-me dela foi a indiferença. Nunca tive um abraço, mesmo pedindo e nossa despedida foi uma leve oração. Eu não sinto falta de afeto das mulheres infinitas da minha vida… mas, juro, que por muito tempo, eu quis o afeto dela para ter a lembrança dele quando ela partisse. Não chorei, nem senti a previsão de falta… Por isso, a inveja desse seu sentimento de dor…

Não vou dizer para você superar… porque sei que a falta é muito além da presença física. O que vou te dizer é para que você teça suas lembranças dentro de todo afeto que você recebeu dela e ainda recebe da filha dela – sua mãe – em ritos de coragem para poder viver. A morte é essa faca que corta da gente pessoas que são nossas bases. A morte pulsa nas veias da existência e isso é inevitável e o que fica é a leveza do afeto, do abraço, das imagens que a gente vê todos os dias.

Quero encher seus olhos de imagens lindas todas as manhãs para que seu sorriso vibre pelas ruas da França, pelos campos de Portugal e pela vida afora junto com as lembranças de sua avó sob a benção atenta de sua mãe.

Quero que minha poesia te alcance na tonalidade dos dias e das manhãs em fusos diferentes e quando o buraco em seu coração doer de saudades que todas as lembranças do afeto dela sejam como o pousar da borboleta na flor, como se fosse o abraço dela.

Abraço carinhoso,
Mariana Gouveia
Projeto 52 – Scenarium Livros Artesanais
Participam desse projeto:
Obdúlio Ortega Lunna Guedes

Lunna Guedes · Mariana Gouveia · Projeto52

Caminho… e atrás de mim caminham lugares…

Bambina mia,

Já te aviso de antemão que essa carta é extra-sensorial… Em alguns momentos você pode fechar os olhos e sentir o vento… o caminho por onde te levo tem vento e tem o cheiro de sua cozinha, da xícara de café, do pão no forno sendo assado… e tem tato, porque posso sentir você ao mais leve toque na tela do computador… o abraço quentinho, a risada moleca e o som da bolinha de tênis ecoando pela casa enquanto Jane dog tenta roubá-la…

Acabei de descrever a saudade – você sabe disso – e vendo sua foto sorrindo, é como se você estivesse em minha frente, abrindo caminhos calçadas afora para eu não tropeçar, indicando esquinas enquanto caminho…
Caminho… e atrás de mim caminham lugares… e posso detalhar cada centímetro das ruas que caminhei contigo.
O vento gelado de um fim de agosto, garoa fina, mala arrastada…
Ônibus lotado e seus olhos marejados enquanto te contava minha história e senti ali, a cumplicidade de quem entende o outro sob o olhar atento do amor. Tantas coisas que já vivemos juntas.

Poderia enumerar datas e assim, marcar o tempo que existo em sua vida… mas, acho, que eu me enganaria porque acredito que o Universo só nos reaproximou de novo, de algum tempo em que não lembro, só que desde o primeiro abraço houve o reconhecimento de que eu já estive dentro dele em outro tempo.

Essa missiva está adiantada algumas horas, porque seu dia é amanhã e seria para amanhã minhas palavras. A gente anda se emocionando juntas em conversas em aplicativo de mensagens, e posso dizer em segurança que sua mão segura a minha sempre… em filas de espera, enquanto faço almoço, jantar, café da manhã… quando trovoa, quando tem sol e então, nesse meu caminho, sei de sua presença ali, mesmo não estando e a cada caso novo, história, memória e até fofocas, você está ali, atenta ao meu chamado. Sou grata por você na minha vida… se eu sou um afago do universo para você… ah, bambina mia… Você é a porta segura que sei que ao bater, ela se abrirá para mim. Com todos os aromas que uma casa possui, inclusive da pizza que acaba de me oferecer e seu abraço tão reconfortante.

Sou mesmo uma abençoada!

Auguri!

Mariana Gouveia
Projeto 52
Lunna GuedesAnna Clara de Vitto

Mariana Gouveia · Projeto52 · Scenarium Livros Artesanais

 — O silêncio aumentou tanto que o relógio parou.

É agora – na pura ausência das coisas
e a madrugada por abrir.
Um palco a lua.
Eu observada de fora da janela.
 Ana Luísa Amaral

Bambina mia,

Queria te contar que de repente, no meio da noite, surgiu um grito mudo dentro de mim… vim aqui, como se os últimos dias tivessem sido invenção minha, mesmo porque não combina comigo essa angústia em demasia. Confesso que até permiti que o silêncio dominasse a casa.

O silêncio aumentou tanto que o relógio parou… Não liguei o rádio, nem ouvi as canções que eu gosto… De barulho aqui, só o som do vento das folhas do ipê no quintal ou vez e outra, o latido dos cães no quintal. Até eles parece que entenderam que o quente dentro da pele era mais do que uma febre sutil. O relógio, coitado, perdeu sua função de marcar as horas quando descarregou. Foi retirado da parede e permanece quieto sobre o móvel da sala.

Mas, hoje, abri as cortinas e deixei o sol entrar. Arrastei os móveis do lugar, limpei a poeira e molhei as plantas. Depois, suspirei e enfrentei o dia sem missa, sem notícias lidas e tratei apenas de ver a receita do pão recheado que fiz. Foi quase uma alquimia combinar a massa com o recheio e o cheiro do alho a invadir a cozinha… no canto, sobre a mesa, as roupas por passar.

Não foram dias fáceis, mas deixei outubro para trás, com seu luto, suas lutas, suas dores e a lágrima seca por trás dos olhos… Perdi prazos – eu sei – e textos deixaram de ser escritos. Às vezes, fico pensando em como cheguei até aqui, nessa encruzilhada como quem esqueceu o endereço. Mas, a monotonia cedeu e avancei no equilíbrio das horas que o relógio não marca.

Choveu e trovejou e foi nesse momento que pensei em te escrever e dizer que apesar de tatear as paredes no escuro, buscando a porta de saída do quarto para não acordar ninguém, eu estou bem… acho que descobri que sou forte – ou pelo menos finjo que a coragem veio aos poucos e o medo que me atingia evaporou-se…

A vida é essa sombra no espelho, é esse azul desbotado no céu antes da chuva, é o arco-íris quase apagado entre um relâmpago e outro e eu sou essa espera de tempos em tempos que se atreveu a chorar… mas que hoje já respira sorrisos.

Grazie por seu abraço e mão estendida… Grazie por ter estado sempre aqui.

Bacio,

Mariana Gouveia
Projeto 52
Scenarium Livros Artesanais

Mariana Gouveia · Projeto52 · Scenarium Livros Artesanais

– Ocupar o silêncio da casa

Bambina mia,

Eu nunca consegui ocupar o silêncio de uma casa… pelo menos, não me lembro. Desde pequena, com seis irmãos, a algazarra era imensa e mesmo eu sendo a mais quieta entre eles, o silêncio não existia e fui deixando o barulho gritar em mim.

Dos barulhos que eu mais gostava era o dos trovões e mesmo com todos os espelhos tapados com lençóis e o medo de minha mãe dos raios que sempre acompanhava a fala do céu quando acontecia uma tempestade, para mim, o trovão era a voz do céu… rompia o silêncio ou abafava os gritos dos irmãos em correria pela casa e eu ficava em pé, na porta ou janela, maravilhada com o eco a estrondar enquanto meus irmãos se escondiam. Buscavam abrigo no colo ou ao lado da mãe.

Com o passar do tempo e a distância entre os meus irmãos, eu rompo o silêncio que em alguns momentos me ronda com música, o canto dos pássaros e o vento.

Hoje, meu dia foi quase igual ao seu e enquanto sua missiva ganhava minha emoção, trovejava aqui… e como se fosse sintonia, o toc toc da mensagem ecoou com seu nome sendo gritado no quintal.

Esteve quente o dia inteiro e antes que o aroma que nós duas amamos – o petricor – exalasse por aqui, trazendo a docilidade de suas letras, trovejou… e ao gritar seu nome lembrei-me que descobri sobre o nome petricor dias desses – que é nada mais que o cheiro do pingo da chuva na terra seca. Fluído etéreo. Sangue dos deuses – é quase poesia… já, imaginou, bambina, a poesia no nome das coisas? O aroma que a chuva provoca ao tocar o solo… é como se perfumar para encontrar alguém e juro que me lembrei de sua rinite e sorri quando descobri que esse cheiro é quase como o cheiro do seu abraço…

E veio o vento, trovões e chuva e meu quintal vibrou com o petricor a aromatizar o jardim enquanto chorei… Essa semana, foi de partidas e de nascimento. Alguém se foi, porque era o tempo de ir e um menino nasceu sob meus olhos. E sob seus olhos, um ninho se fez colo… Fico me perguntando onde as coincidências nos alcançam sempre?

Enquanto os relâmpagos cortam o céu eu encontro a resposta: é no silêncio que se ocupa de nós. O da sua casa e o da minha… nesse piar que ocupam sua varanda e o meu quintal. O silêncio que grita em nós.

Amo tu imenso!

Bacio,
Mariana Gouveia
Ph: Imagem: Pinterest
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