De todas as estações · Mariana Gouveia

Equinócio de Outono

Embora começasse outra estação, e como os livros diziam que começavam o equinócio do outono, para nós ainda era a estação das águas, porque a chuva persistia nos dias e a água tomava conta de todo lugar.

As gotas pareciam brincar com a natureza e a enchente sempre acontecia nas margens onde o rio beijava as matas.

Sabíamos que a natureza cumpria seu papel de estiochuvaestio…

Às vezes, chovia a noite toda e o barulho das gotas a cair no telhado era um convite para o sonho… Em outros dias, a chuva durava dias inteiros e ficávamos presos dentro de casa…

O cheiro do chá a invadir os aposentos… os irmãos a inventar brincadeiras e o céu a derramar bênçãos dentro da presença da estação.

Outono só nos brindaria em instantes nos meses seguintes e só aí, o vento nos beijariam em sopros com a amenidade do tempo

Mariana Gouveia

6 on 6 · Das palavras das cartas · Lunna Guedes · Mariana Gouveia · Scenarium Livros Artesanais

6 on 6 – miudezas

A vida é tão miudinha que a gente tem que vivê-la ao máximo para ela se engrandecer”
Minha mãe

Bambina mia,

A tarde já ensaia seu final aqui no meu quintal e ouço os trovões para além dos muros… você sabe que meu lugar tem além da ave de todo dia as miudezas que encantam meus olhos. O jardim é enfeitado por elas… E quando chove, eu tento protegê-las.

Eu poderia te escrever e falar sobre as grandezas que enxergo aqui… teria muita história e coisas para contar e mostrar. Mas, hoje, vamos falar sobre essas coisas mínimas, que muitas vezes, nem enxergamos quando passamos apenas o olho ligeiro.

Sabe, bambina, eu fico horas entre a levezas das pétalas e os insetos miúdos que aparecem aqui. Já enumerei mais de 100 espécies. Algumas, parecem partículas de átomos de tão pequenas e não deixam de ser, sendo que somos todos parte desse universo imenso.

Para falar a verdade, eu ia te contar sobre outras miudezas que povoam minha memória e traz lembranças da infância. Mas, essas, estão guardadas no Armário das Maravilhas e quando for possível, falaremos dela. Por enquanto, quero te trazer pela mão enquanto troveja e te escrevo a singularidade das joaninhas e insetos que moram aqui.

Quando me deparo com alguma lady bug – como tu chama – em uma folha, flor, ou capim, eu penso como somos pequenos diante da magia do universo – mesmo imensos em nosso tamanho e ego – e vejo aqui, nesse quadrado de 130 metros quadrados que é meu quintal a magnitude nas miudezas das coisas.

Bambina mia, muitas vezes, uma pequena demonstração de afeto muda o dia de alguém, um afago na cabeça dos cães faz o instante ser feliz, um riso leve para um desconhecido na rua faz ele se sentir em paz, mesmo que por poucos minutos. A gente nem sempre repara na pequenez das coisas… nem sempre somos tocados pelo mínimo, porque de alguma forma sempre queremos o muito. Mas, a vida é feita de pequenas coisas que nos engrandecem, como minha mãe me dizia, lá na infância. E como aqui, uma pequena chuva começa a cair, finalizo essa pequena carta para tocar a grandeza do tuo cuore.

Bacio,
Mariana Gouveia
Projeto Fotográfico 6 on 6
Scenarium Livros Artesnais
Participam comigo:
Lunna GuedesRoseli Pedroso e Suzana Martins

Das rotinas · Mariana Gouveia

dos rituais da memória

O guarda chuvas não continha o equilíbrio do vento, quebrou na esquina de cima, antes mesmo que a chuva passasse.
A água escorria do céu feito afagos.
A solidão é mesmo feita de horas vazias.

Uma mulher me contou uma história do pai – vi a emoção dentro dos olhos dela –
O pai, sempre deixava para ela e os irmãos, um pouco da comida da marmita. Dava uma colher para cada, só porque eles gostavam.
O olho do pai brilhava vendo a comida ser compartilhada entre os filhos.
Dentro dos olhos dela o céu brilhava de azul e chovia.
A voz embargou na lembrança.
Tão perto, ali, a revelar memórias. Tão longe, ali, a viver dentro delas.

Não foi preciso abraçá-la… o gesto continha o abraço.

Mariana Gouveia
dos Rituais da memória

Das rotinas · Mariana Gouveia

Dos rituais da vida

A sorte morreu na esquina, duas quadras abaixo da morada final.
Alguém recebeu um buquê de flores. Ria ilusão nas escolhas feitas.
Espalhou fragrância por onde passou.
Dizia que ritual não precisa de ritos.
Buscou fiador para vender verdades.
Deixou guardada nos classificados a sorte vivida.
Todo colo é sabor de espera.

Mariana Gouveia
dos Rituais da vida

Das rotinas · Mariana Gouveia

Dos rituais

Procura o equilíbrio tênue dentro do dia. Encontra o desafio entre amar e gostar.
O sentimento é coisa estranha dentro da gente.
As coisas miúdas acontecem por acaso diante dos Rituais.

Escreve, define, se questiona sobre qual o caminho para a serenidade do tempo…
Descobre que a lógica da vida é viver.

Mariana Gouveia
dos Rituais

Efeito borboleta · Mariana Gouveia

Vácuo

Depois das perdas o corpo ganhou ares de memória. Seu nome apareceu nas lembranças e repeti o ritual de todo dia… Café, oração, café, busca, café, jardim, café, asas e só daí sigo o caminho rumo à rua de cima.

Enquanto atravesso a madrugada-quase manhã tento lembrar onde te perdi. Em que vácuo da vida você escapou?

Respiro enquanto corro para alcançar o ônibus e as lembranças ficam nas asas do quintal e na singeleza da rua de cima.

Depois das perdas, as lembranças se tornam apenas lembranças… Afinal, o dia é feito para viver.

Mariana Gouveia

dos diários · Mariana Gouveia

Eu…

Eu, aos quatro anos na floresta encantada, andando com meu pai vendo um bezerro nascer, a comer uma fruta do conde e a olhar para a minha mãe, tão suave parecendo moldura de quadro, na janela da casa a sorrir.

Eu aos seis anos, com uma boneca de pano rasgada, a perguntar à minha mãe se ela morreu e se vai para o céu como os tios que já morreram.

Eu aos nove anos, com um cogumelo na mão entrava pela primeira vez na floresta adentro, cortei o dedo com o canivete e meu sangue se misturou à terra vermelha e fui batizada pela natureza, é o meu aniversário, estou feliz e as velas do bolo eram as estrelas no céu, e meu pedido era de que a poesia em que eu vivia preenchesse minha vida até o fim dos dias.

Eu aos treze anos sentindo a brisa no rosto, o sol do outono queimava a pele quase numa caricia, havia lido cartas de amor e sentia um fio de sangue quente e a voz da minha mãe a dizer-me que é assim mesmo, filha, agora já és uma mulher.

Eu aos quinze ano era coroada rainha da festa da cidade onde nasci, vestia o vestido bordado por uma fada e todos os olhares me fazia querer fugir e eu sem saber o que fazer. Via meu mundo mudar e a mãe ir para onde os tios já haviam ido e perguntava onde está minha boneca de pano e o cheiro da floresta e meu esconderijo de criança?

Eu aos vinte e um anos, recém-casada, a perceber que a vida real não era o conto de fadas, os pés inchados e a chuva súbita… um filho a crescer dentro de mim e a morte a tomar e eu a me perguntar se minha mãe o recolhia e cuidava dele pra mim.

Eu aos vinte e três anos mãe, a respirar comigo um menino que tinha olhos brilhantes e me fazia acreditar que havia um céu na terra.
Eu aos trinta anos num automóvel, morria de medo de dirigir e enquanto corria por medo de perder o ônibus a minha vida corria comigo, tal e qual como dizem que acontece a quem morre de repente ou ver um rio na tua frente e não sei nadar. Sinto o vento na cara, escrevo algo na janela, respiro e escrevo poesias…

(eu ainda escrevo poesias).

Eu, aos 43 anos descubro uma dimensão onde ela vive e passo a viver do mesmo ar e da mesma sintonia, me derramo em poesias e percebo que pra ser feliz é preciso pouco.

Eu, aos 46 anos volto ao mesmo lugar de antes, o lugar das poesias que revisitam meus sonhos e vejo que é o mesmo amor e há certa fascinação pelo abismo que é onde estou de pés no chão, prontos pra voar.

(e eu ainda escrevo poesias) …

Eu, aos 48 anos reparo que as rugas redesenham meu rosto e que alguma coisa sempre dói quando me levanto. Ainda não tenho netos. Visito a floresta de vez em quando. Vasculho as flores em busca de vidas mínimas, descubro que gosto mais de mim agora.

(eu ainda escrevo poesias, mas que para isso preciso de encantos).

Eu, aos 57 anos, ainda tenho muitas perguntas sem respostas – também tenho muitas respostas para algumas perguntas. Ganhei uma neta e um neto de coração. Ainda me encanto com as vidas miúdas, ainda sou dominada pelos animais.

(e ainda escrevo poesia – mesmo que o encanto não seja o ponto principal.)

Mais do que escrever poesias, já tenho 6 livros publicados. Ainda enfeito as tranças com fitas de veludo laranja – embora de cabelos bem curtos – a menina que habita dentro de mim.

Mariana Gouveia

Das palavras das cartas · Mariana Gouveia

tem certeza de que a rosa era mesmo rosa?

Rose,

Quando você me deu essa rosa, era de um rosa mais rosa. Eu comemorava um aniversário e você, mais uma vez, com todo amor que lhe cabe, quis povoar meu jardim.

Com o tempo, o rosa foi purificando e a rosa se tornou multicor… Quase branca.
Hoje, o aniversário é seu e eu poderia dizer sobre tudo que vivemos… Nem vou dizer o tempo que vivemos, porque, por mais que eu escreva sobre… você é em mim, de tanto tempo que só digo que existo sempre em você.

Assim como a rosa mudou o tom, enfrentou diversidades, a gente também mudou. Depois de quase dois anos sem te ver, mas nesse mesmo tempo sendo presença uma na outra, pude te abraçar e sabe, parece que nunca nos separamos… O riso, a cumplicidade, o amor ultrapassam esse tal de calendário.

O meu desejo é o mesmo de quando te dei o primeiro abraço e parecia que eu já te conhecia de muito antes.
Que você seja feliz e eu vou estar aqui sempre, nos dias bons e ruins… Sendo guia ou apoiadora.
Te amo infinito

PS: tem certeza de que a rosa era mesmo rosa? Porque o que impera em meu amor e coração é tu, Rose.

Feliz aniversário!
Mariana Gouveia

Mariana Gouveia

Em outra vida

Cortou o cabelo, deixou de pintar as unhas com o verniz escarlate e assumiu as brancuras dos fios. Fingia não ver o espelho a desenhar as rugas dentro do riso. Gostava de dar nomes às nuvens.

Era outra, aquela menina de antes e embora ainda escrevesse em cadernos
e diários nas noites quentes já não era a mesma. Gozou quando conseguiu descobrir o nome da estrela de estimação. Mas, isso foi em outra vida.

Mariana Gouveia
Das coisas breves

Mariana Gouveia

Se apaixonou por heras,

Por folhas secas que caiam como brindes do quintal da vizinha.
Desenhava nos muros coisas aleatórias de quem acreditava que só se vive uma vez.
Essas coisas de quem se acostuma com uma única estação – o outono era sua preferida –
O ocre das paredes sem estuque, também.
Conhecia os odores da terra e o cheiro de chuva quando cai.

Mariana Gouveia
Das coisas breves