De todas as estações · Diário das quatro estações · Mariana Gouveia · Scenarium Livros Artesanais

Da estação da águas

Tinha dias que chovia e fazia sol. Era a magia do tempo acontecendo e refletia dentro das gotas que caiam… O jardim aproveita os bocados da chuva, era nessa hora que a mãe falava da delicadeza da cura pelas plantas e de como eram abençoados esses dias de água. Ela conhecia a aridez dos dias secos e do quanto fazia falta se a chuva não acontecer. A vontade do jardim de florescer fica mais latente nesse tempo… as ervas daninhas faziam oferendas no quintal e a vida acontecia liquida.
Os gestos nos ramos viviam de entrega à água.
Era amor em pequenos atos da natureza e a gente. Quando o tempo dava um espaço para o sol, a flor se abria e seguia seu caminho rumo ao calor.

As janelas se abriam para que entrasse a energia renovadora do sol dentro de casa… o extravio morno na pele.

Mariana Gouveia
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Das palavras das cartas · De todas as estações · Diário das quatro estações · Mariana Gouveia · Scenarium Livros Artesanais

Era assim em todos os séculos que existiu

e em cada século repetido o ritual do amor.

Ph: Pinterest

Havia chegado com cheiro de maresia e trazia nas mãos o beijo do mar. Se transformou em poema contado dentro do livro. Página a página em ritmo de poesia e o coração tal qual as ondas batia. O nome feito labirinto pronunciado ao vento. Era assim em todos os séculos que existiu e em cada século repetido o ritual do amor. Escreveu quatro cartas para endereços diferentes. Falava do passado, presente e futuro. Desenhou estradas que talvez nunca passaria. Retratou a cidade com seus cheiros, suas calçadas floridas pelos ipês de várias cores. Tentou passar o perfume das ruas através das frases. Imaginou o riso e a emoção de cada um ao abrir o envelope colorido. Contou das nuvens e as manhãs de verão. Explicou os sonhos, detalhou a esperança e cumpriu o rito da promessa. Falou da menina que recusou o livro por desconfiança — afinal, o mundo anda estranho — e perdeu a vontade de oferecer de novo. Escrever não precisa de explicações.
Beijou um a um os acontecimentos e fechou o envelope.

Mariana Gouveia
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É a época das chuvas no telhado

Fui ao baú desenterrar poemas. Chove a manhã toda e se estende para a tarde. Ouvi Gadu e sua voz a ecoar a palavra que era poema dentro da melodia. Ouço os barulhos da casa… os pingos da chuva no balde a guardar momentos e a luz chega pela janela… sou esse cotidiano que chove todo dia, e as flores bebem a água que cai. Ainda visto o pijama da noite, e o dia segue seu rumo de hábitos, manias e defeitos… O pássaro de todo dia pede abrigo na escada enquanto lá fora a vida acontece e eu sou um nome que habita dentro da solidão. Lavo o uniforme sujo e soletro o canto da ave que pousa perto de mim.

Vasculho os diários guardados e leio livros que estavam ali, parados, como a esperar para exalar histórias e à volta são as paredes e posso passar da sala para a cozinha enquanto os trovões ecoam e parecem dizer que aqui o universo tem um portal estranho. Revisito os casulos que se preparam no pé de orquídeas silvestres. Cuido para que eles não molhem. Sou essa metamorfose que cresce e muda a cada dia.
Desfolha em asas a borboleta que nasce. Está aqui e a sinto absolutamente indefesa diante dos dias. Da asa escorre o líquido da vida – é apenas um inseto… alguém diria – em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir uma coisa das outras coisas e ela está aqui, sendo pouso em minha mão e neste momento eu sei e sinto ao certo o que significam certas palavras como a palavra paz.
A vida segue líquida dentro do dia e prossegue nos gestos que faço apenas observando a chuva dentro da canção de Gadu.

Mariana Gouveia
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dentro das palavras fazia as cores se misturarem na alma.

Ph: Pinterest

Habitava dentro das cartas que recebia. Lá pelas tantas, acontecia em Paris. Andava pelas vielas de aldeias que nem sabia o nome. Eram tantos os detalhes que ela desenhava em palavras. Gostava de morar ali, entre o mar e o rio. Entre os jardins suspensos e o seu. Pisava na terra pura, com cheiro de chuva nas manhãs onde o sol raiava e o grilo misturava-se ao verde do lugar, enquanto ela dentro das palavras fazia as cores se misturarem na alma. Colocava em cada envelope flores ou folhas secas… Outono em uma cidadezinha onde os cogumelos lembravam as histórias que contava para ela nas noites frias de junho e naquele tempo era inverno. A primavera chegava nos pingentes coloridos que comprou em um país estranho e o verão nos sóis desenhados em cada canto da carta. Habitava dentro das cartas que recebia e só assim começava a viver.

Mariana Gouveia
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azul em qualquer céu. · Das palavras das cartas · Diário das quatro estações · Mariana Gouveia · Scenarium Livros Artesanais

e as ipomeias azuis beberam da água que caíam.

Hoje choveu de verdade aqui. Daquelas chuvas que duram o dia inteiro e as ipomeias azuis beberam da água que caíam. Fiquei a desenhar a cor dentro do seu nome enquanto as luzes sobre a cidade ofuscam entre os pingos das janelas embaçadas. O vento cruza o espaço da casa e as flores do mamão forra uma parte do quintal. Troco a solidão pela canção de Gadu. Ensaio mais uma vez as palavras da carta que escrevo. Apago várias vezes algumas frases que reedito, reescrevo e desenho corações na janela. A previsão do tempo assusta, já que o rio que corta a cidade avança próximo das casas ribeirinhas. O tempo lá fora não permite que eu veja a lua e a solidão grita dentro da noite.


Mariana Gouveia
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Escrevi mil cartas no meio da tarde…

Repeti nelas o episódio do dia. O pássaro de todo dia a vasculhar momentos no quintal.
O vento traz a brisa mansa. Desenho rotinas dentro da memória.
Fotografo a ave que te falei para que fique registrado.
Algumas das cartas rasguei, sem colocar no envelope.
O sol colore o céu com suas nuances de laranja.
Chamei seu nome mil vezes ao anoitecer.
Cabia saudade dentro da palavra falta.

Mariana Gouveia
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Havia um pássaro a derrubar paredes

– era o ninho vazio e a solidão da asa enquanto chovia. O gesto da noite de fechar as portas era ele quem fazia. Ficou vazio o canto onde ele dormia.
Nem cabia ninguém nessa ausência. A casa continha presença em todo canto.
Arrastei o tapete pela casa. Tentei vencer as horas dos lugares mortos. Um telefone toca ao longe e alguém grita. O cão late na ansiedade de um portão que não abre.
As gotas que aliviam as dores dentro do chá. A rotina do tic tac do relógio da sala. Fazia tempo que não chovia dentro de mim.
Respirar é um ato difícil dentro dos corredores. Nos muros, os grafites quase apagados – havia uma declaração de amor descrita na carta – e o pássaro invade o dia com seu canto.

Mariana Gouveia
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dentro do que lembrava de felicidade.

A carta veio dentro do livro. O envelope colorido a evocar lembranças de tudo que foi vivido. Ali, cabia a frase da música que gostava e continha a tradução do que sentia. Riu ao lembrar dos gestos que mãe fazia quando escrevia. Há quem diga que ela faz igual.
Podia junto com as palavras fechar os olhos e sentir o cheiro do mato, das verduras frescas da horta, do chá de hortelã a invadir os aposentos… a broinha de milho a atiçar a fome… até os gritos dos irmãos lá fora. A sensação é que se abrisse a janela as lembranças se materializariam diante dos olhos.
A letra miúda a descrever os instantes tão bem que poderia desenhar se quisesse.
A mão a acolher o voo, a ser pouso do inseto preferido enquanto os irmãos morriam de medo de qualquer ser que pudesse voar.
Era uma carta antiga… Lida infinitas vezes como se com isso pudesse voltar no tempo e apreender tudo de novo, dentro do que lembrava de felicidade.

Mariana Gouveia
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Da anatomia dos voos

Ph: Smooth

Fiz um tutorial sobre perdas seguindo à risca cada etapa. Mas na hora h, quando o vento lateral veio com notícias de ida sem volta, esqueci as regras. Abri os braços e pensei ser janela aberta para o mar; apaguei o rito do nascer. As asas perderam o sentido de voos e tudo ficou cinza. E se eu não for poesia amanhã? E se a metamorfose não fizer jus ao instante? E se a morte rasgar a pele e camuflar a vida com outas formas desconhecidas? Vou ter que esperar amanhecer para saber outro dia. Existem muitas maneiras de ir embora, apenas uma de ficar.

No fim do dia serei apenas uma sombra na parede.

Mariana Gouveia
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Tenho uma solidão para esse nome das coisas.

Tenho uma solidão para esse nome das coisas.

Virei perfume dentro das suas palavras. Vi uma moça da aldeia com borboletas no corpo. Era feito de sol essa saudade. O jardim endoidou de vez quando percebi o vazio por detrás da janela. O calor assolou o cerrado e a meteorologia colocam vermelho puro no mapa daqui. O lugar de mim esvazia o peito e estende a mão, não sou mais além de sombra onde a asa não me abriga.

Escrevo cartas antecipando primaveras… a impressão do dia seguinte é quase logo ali, no outro mês, já repetido exaustivamente no sistema. O desejo tão líquido quanto a sede – falta água – e a fome de tocar sua mão, tão marítima dentro desse oceano seco de rio.

A ventania consome essa vontade de pouso, onde meu quintal respira maresia nos cantos do muro.

Mariana Gouveia
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