De todas as estações · Diário das quatro estações · Mariana Gouveia · Scenarium Livros Artesanais

Da estação da águas

Tinha dias que chovia e fazia sol. Era a magia do tempo acontecendo e refletia dentro das gotas que caiam… O jardim aproveita os bocados da chuva, era nessa hora que a mãe falava da delicadeza da cura pelas plantas e de como eram abençoados esses dias de água. Ela conhecia a aridez dos dias secos e do quanto fazia falta se a chuva não acontecer. A vontade do jardim de florescer fica mais latente nesse tempo… as ervas daninhas faziam oferendas no quintal e a vida acontecia liquida.
Os gestos nos ramos viviam de entrega à água.
Era amor em pequenos atos da natureza e a gente. Quando o tempo dava um espaço para o sol, a flor se abria e seguia seu caminho rumo ao calor.

As janelas se abriam para que entrasse a energia renovadora do sol dentro de casa… o extravio morno na pele.

Mariana Gouveia
Desvios para atravessar quintais
Scenarium Livros Artesanais

Das rotinas · Mariana Gouveia

Maria das flores

Ela tinha um jardim bonito. Desses cheios de flores variadas e ervas que tanto servem pra remédios como para temperos.

A cada 15 dias eu visitava aquele jardim e nunca era a mesma flor. E nem os mesmos pássaros e as borboletas laranjas, também não eram as mesmas. Mas ela, era. Eu a via sentada numa das cadeiras que ficava debaixo de uma árvore.

A princípio, parecia que me olhava. Cheguei a ter impressão de que sorria quando essa ou aquela borboleta escapava de mim. Mas, era impressão mesmo.

Respondia ao meu bom dia, meio tímida e não mais que isso, enquanto eu invadia quase a parte toda do quintal atrás dessa ou daquela borboleta.

Quando chegava minha hora de ir eu agradecia, dava tchau e ia rumo à vida. E ela ficava ali, no seu jardim de flores.

Mariana Gouveia

De todas as estações · Mariana Gouveia

e ainda nem era outono.

Havia chovido em uma dessas tardes mornas de fevereiro… O lírio do vento ainda trazia as gotas como se fosse souvenires e ela ali, espiando a tarde que amarelava o muro do quintal.

A solidão fazendo companhia para as flores que se transformaram em relicários das gotas da chuva – de ontem e ainda nem era outono.

Mariana Gouveia

azul em qualquer céu. · Das palavras das cartas · Diário das quatro estações · Mariana Gouveia · Scenarium Livros Artesanais

e as ipomeias azuis beberam da água que caíam.

Hoje choveu de verdade aqui. Daquelas chuvas que duram o dia inteiro e as ipomeias azuis beberam da água que caíam. Fiquei a desenhar a cor dentro do seu nome enquanto as luzes sobre a cidade ofuscam entre os pingos das janelas embaçadas. O vento cruza o espaço da casa e as flores do mamão forra uma parte do quintal. Troco a solidão pela canção de Gadu. Ensaio mais uma vez as palavras da carta que escrevo. Apago várias vezes algumas frases que reedito, reescrevo e desenho corações na janela. A previsão do tempo assusta, já que o rio que corta a cidade avança próximo das casas ribeirinhas. O tempo lá fora não permite que eu veja a lua e a solidão grita dentro da noite.


Mariana Gouveia
Desvios para atravessar quintais
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Das palavras das cartas · De todas as estações · Mariana Gouveia

Carta para Luci aos cuidados das árvores

Querida Luci,

Hoje eu vim responder seu puxado de assunto sobre árvores. Aqui choveu o dia inteiro… aliás, desde ontem chove e o rio que corta minha cidade ao meio está a ponto de esparramar água ruas afora. São quase doze horas de chuva ininterrupta.

As árvores do meu lugar fazem festa… tem até pé de manga dando flor. Da porta da sala onde trabalho vejo as manguinhas se formando. São temporãs, eu sei…Mas essa água benta que cai favorece algumas a se manter em pé, florir, dar frutos e outras até cair, Luci.

Nos meus arredores não caiu nenhuma… mas foram derrubadas. – e isso é pior do que cair porque já cumpriu sua missão de árvore –
Aqui, derrubaram em nome de um progresso que nem veio. Falaram que iam construir o VLT, Luci e levaram centenas dos meus ipês que coloriam as ruas com suas cores para o lixo.

As ruas hoje, estão peladas de árvores. E não há também o tal VLT. Mas ainda há alguns lugares onde elas exalam a singeleza pura da natureza.

Ali, eu me faço descalça e peço a permissão para o abraço. Há o ipê rosa, o branco e o amarelo dourado… além do roxinho do araçá e a magnitude dos flamboyants.

Não sei se o tempo de uma figueira para renascer de novo. Sei que o cedro demora anos. Lembro até a canção que meu pai cantava quando ia campear o gado.

As árvores cumprem uma missão, Luci…A sua também teve. E assim, vamos seguindo catando sombras que tão gentilmente nos dão. As flores e algumas, a cura em forma de folhas e raízes.

Todos os dias, quando o ônibus me leva rumo a mais um dia de trabalho, eu ainda busco as que existiam por aqui. E faço como você, olho para o canto e as vejo – ou imagino – e ali, acato o céu em seu rumor de asas e sigo.

Dia após dia.

Beijo, Luci
Mariana Gouveia

Das rotinas · Mariana Gouveia

Dos rituais da vida

A sorte morreu na esquina, duas quadras abaixo da morada final.
Alguém recebeu um buquê de flores. Ria ilusão nas escolhas feitas.
Espalhou fragrância por onde passou.
Dizia que ritual não precisa de ritos.
Buscou fiador para vender verdades.
Deixou guardada nos classificados a sorte vivida.
Todo colo é sabor de espera.

Mariana Gouveia
dos Rituais da vida

Das rotinas · Mariana Gouveia

Dos rituais do amor


Ouvia a história de amor do homem do carro vermelho e chorou com ele suas dores de amor.
A tristeza sombreou o dia debaixo do pé de ipê, que floriu sem ser época nem nada.
Flor temporã – disse ele declamando poesia e falando que iria cruzar o mundo em nome desse amor. A natureza calou o riso dele quando ela se foi. Pediu para decifrar a sorte do dia dentro do horóscopo dele. A linha da mão falava em continuidade. Era assim que acontecia dentro dos romances do dia.

Mariana Gouveia
Dos rituais do amor

Das rotinas · Mariana Gouveia

Trouxe flores para você

Fiquei grávida de poesia depois de te amar. Há dimensões de vida inteira florindo no quintal.
O cheiro de terra molhada perfuma o quarto. Não sei se era o desejo maior ou se era fome de uma eternidade – esse meu sorver da vida – que aflora e vira flor.
A latitude inteira cruza meu quintal. Te dou o canto do beija- flor no meu bom dia.
Mil beijos despedindo rotinas desavisadas.
O som do piano nas figurinhas extraordinárias embala o nascer de mais poesia. Nascerão todas entre o agora e o depois.
E entre a paixão e a felicidade plena, trouxe flores para você.

Mariana Gouveia

Marítima · Mariana Gouveia

Floreia

Ph: Ziqian Liu

Havia jeito de asa para o lado do Sul
a maré previu a fase da lua
e a maresia invadiu meu quintal

eu era só teu olho diante da janela
a tarde tinha a brisa

tinha gesto

Guardei o meu amor em palavras

escrevi seu endereço no voo do pássaro
e seu nome foi jogado no céu antes que as estrelas acordassem.

Havia gestos de flores no quintal. O cão latia para o riso das crianças.
Era assim a vida na docilidade das coisas.

Mariana Gouveia
dos Rituais da maresia

Marítima · Mariana Gouveia

Dei-lhe o nome de flor

Chamava ela pelo nome e docemente ela respondia.
Trazia sorrisos, às vezes, quando me atendia. Quase nunca o coração.
Não sabia extrapolar as coisas – dizia –
era feita de matéria perene, ela – a que eu criei.
Nos meus sonhos vinha feito névoa.
Me tocava com a maciez das nuvens e eu era etérea. A felicidade cabia tudo dentro de mim.
Dei-lhe o perfume do nome. O toque das pétalas. Dormia sobre ela. Por ela
e quando amanhecia eu dançava para ela, chovesse ou fizesse sol e regava as sementes que enviou para o jardim.
Um dia, chamei seu nome. E não veio riso, nem coração. Não veio nada.
O eco vagou pelos quartos todos. Visitou gavetas. Bateu janelas e ela não estava.
A montanha onde venta ecoou em resposta do meu grito.
Procurei-a nos lugares, e feito névoa se dissipou.
Eu, que buscava minha lucidez perdi de vez.
Endoideci. Ainda assim a chamava. Ora com a calma do amor,
ora com a tirania dos amantes. Com a raiva de quem endoideceu de amor.
Não veio mais. Nem em sonho.
Desde então, nas madrugadas vazias vago pelas ruas, nua. Coberta apenas com a flor que ela me plantou, com o riso de doida no olhar, cantando o nome dela como se fosse canção.

Quando o sol sai. Volto ao normal. Se bem, que sem ela nunca sei o que é normal.

Mariana Gouveia
*imagem: Anna O.