infinitamente · Mariana Gouveia

Era uma vez, Marte

O dia ganha visão de outro planeta. O horóscopo avisa que Marte continua em meu signo – ainda – e eu respondo que Marte vive dentro de mim.
A saudade invade quando visito o lugar dela. Cada canto tem a presença forte ali. Viva. Intensa e vibrante.
Olhos me espreitam na sonoridade do dia. Os cheiros das frutas, o canto das aves e a garoa fina que cai.
Isso é de outro planeta – ouço o inquilino da casa dizer – esse quintal tem vida própria. Os mais diferentes bichos vem aqui.
Me distraio nas palavras perdidas como se um eco a trouxesse nos olhos do Louva-Deus que assanhadamente me segue.
A flor que adormece ao gesto simples do toque. É estranho, mas ela permanece ali, em cada canto, em cada folha, em cada planta que nasce e renasce.
A canção do rádio da vizinha do lado ecoa a melodia que ela gostava e Maria Gadu diz:

” Será que te conheço desde a infância
Será que na infância eu parti
Prum mundo imaginado por você
Ou por você um mundo veio
E a infância assim se foi”

Aqui, no mundo dela sou apenas saudade. E me recordo da voz que repetia:
Marte é logo ali. Ponha uma vírgula no teto, dá três pulinhos e Marte acontece.
Hoje, Marte acontece onde meu olhar alcança vida.

Mariana Gouveia

Do lado de fora · infinitamente

Amanhã, meu amor

amanhã faço poemas com os teus dedos donde nascem flores,
amanhã escrevo-te cartas com os lábios a tremer de frio,
amanhã adormeço desperta no canto mais canto que houver da tua voz,

amanhã meu amor,
verei todas as folhas amarelas que nascem do chão e regressam aos ramos
[dos teus braços,
amanhã vou dançar no silêncio proibido que te cala,
amanhã fecho os olhos e finjo que estou acordada
para que me toques as pálpebras com a respiração ofegante de quem cega,

amanhã meu amor,
abro as janelas do peito onde nascem estrelas sem céu,
abro a cama e procuro-te debaixo dela,
dou-te a mão para me encontrares no mapa da pele dolorida,
para que me encontres talvez no mesmo sítio de sempre onde nunca foste,

amanhã meu amor,
dedico-te o vento que roça as estátuas já esverdeadas da tua cidade,
faço-te promessas de palavras que não existem,
desafio-te para um duelo de um só combatente,
deixo-te sozinho comigo encostada aos teus ombros de lava,

amanhã meu amor,
vou cantar canções na rádio da frequência 0.00,
vou atirar-te areia com os pés no meio de lugar nenhum,
devolvo-te as minhas ideias que nunca ouviste porque não sei dizê-las com
[boca nem mão,

amanhã meu amor,
vou gostar de ti como se fosses uma manga doce,
vou ter medo das paredes intactas do teu ser,
vou gritar às raízes das árvores por não as ser ,
vou girar à volta do mundo sem sequer o saber,

amanhã meu amor,
vou desenhar a lápis de cera como as crianças,
dar-te um desenho de que me vou esquecer,
amadurecer à tua espera, à espera de me ver em ti,

amanhã meu amor,
vou fazer malabarismo com o tempo,
desprender-te da liberdade, da minha liberdade,
aconchegar-te à noite sem saberes,

só porque amanhã meu amor,
amanhã,
vou continuar a gostar de Ti.

Raquel Lacerda
in «Os dias do Amor»

Mariana Gouveia · via lunar

70 páginas

Perco-me dentro de você através dos séculos.
Falta- me essa presença oscilante entre a solidão e o tato.
Devia te contar que hoje chorei
e que chamei seu nome infinitas vezes.

Conheci um menino
que trazia uma flor no cabelo
– riu do meu, tão curto, em piada para os amigos –
e a menina que ria com ele
percebeu que ele tinha primavera no olhar.

Coube pétalas brancas na lição do dia.
Descobri que não havia jeito de desabraçar um abraço dado.
E que um estrangeiro pode ter sinal de partida logo na chegada.
Escrevi muitas histórias para te contar…

Depois, desfiz cada uma e dividi em cartas
que talvez você nunca vá ler.
70 páginas onde a lua apenas me avisa
que a vida é feita de fases
e que a solidão é vivida em noites de lua.
 Minguante.

Mariana Gouveia

Divã · dos diários · Mariana Gouveia

Tenho um dragão que come na minha mão.

O dia rompe as rotinas do nada. Era hora de espionar segredos. Na rota dos olhos, o espelho. Denuncia o cansaço de não dormir.
Ela anota. Eu anoto. Rasgo palavras que havia escrito. Uma espécie de silêncio no ar. Tão gritante e ao mesmo tempo, ensurdecedor.
Ando até a janela. O horizonte mostra a ilusão que vivi.
As frases ecoam na cabeça. Divagações do que poderia ter sido diferente e de como ainda brinca quando fecha etapas.
Escrevo o nome dela na janela do agora. Quase grito, quase chamo. Calo.
Ela anota. Eu apago. Rasuro. Sublinho. Acho bonito um nome sublinhado.
Desenho um coração junto. A neblina de fora oferece a opção da escrita.
Um homem pinta um portão de verde. Uma joaninha cai na lata de tinta. Eu a salvei antes que a tinta marcasse as asas.
Ela me olha. Espia os sentimentos que me atinge.
Falo de coisas surreais. Tatuei o nome dela no meu peito. Tenho um amigo imaginário que conversa comigo. Me diz que se chama Tempo e que a melhor escolha da vida, é viver. É um dragão que vive na minha mão. Sublinho a palavra tatuei. Ela ri.
Lembro do riso dela. Lembro de tanta coisa que fizemos juntas.
– Segura ele. Nunca vi um dragão.
– Ele é inofensivo. Só vive no meu imaginário.
Ela anota.
Fala da boneca de milho que era amiga dela quando era menina.
Penso na rapidez das horas. Ela olha o relógio na parede.
Confirma o diagnóstico: Falta de lucidez.
Coloca um comprimido vermelho na minha mão. Meu dragão come.

Mariana Gouveia – Divã
Das fragilidades secretas

Das palavras das cartas · Efeito borboleta · Mariana Gouveia

Carta para Esther aos cuidados de domingo

Esther querida,

domingo para mim é feito de silêncio – interno, eu diria – mas, se eu te dissesse que o quintal é um alvoroço só você iria rir, eu sei. Mas, eu consigo ouvir o bater das asas das borboletas ou as asas de Chiquinho chamando por mim.

Nos domingos, eu deixo de lado as agulhas, as linhas, as canetas e vou tirar as ervas daninhas dos vasos, dos canteiros e eu sei que tudo dói na flor que seca, mas é natural que seja assim.

Essa é a primeira das muitas cartas que quero te escrever, Esther e já vou dizendo que também sinto saudades de tudo que não vivemos, que não fizemos e das cartas que ainda não te escrevi. Mas, eu sinto que sua mão me chega nesses dias difíceis. Foi um afago saber que também sente saudades de mim… e daí, a gente fica pensando de onde, de quando e como… Você sabe que nem tudo tem respostas, né?

Mas é domingo, Esther e eu já deixei de ir na missa faz tempo. Houve um tempo em que as minhas manhãs eram dedicadas às orações… nunca mais fui desde o dia em que a igreja fechou as portas para mim, em um dia que precisei de amparo e nem era dia de missa. Depois disso, passei a orar no quintal, a usar desvios para chegar ao universo pleno. Passei a reverenciar o pleno das asas que pousam em minha mão, a ouvir os cantos do pássaros e a ficar em silêncio aos domingos.

Sabe, Esther, tem domingos que aqui é pura gritaria… tanto no interno de mim quanto no pé de ipê onde um casal de bem-te-vi fez um ninho. Isso para mim virou quase um santuário… também há os barulhos dos meninos da redondeza. Parece que todos vêm brincar na minha rua. Ás vezes, eu até gosto disso. Ouvir os gritos, a correria atrás de uma pipa, a bola batendo forte no muro e vez ou outra, o chamado do meu nome para devolvê-la quando cai no quintal.

Mas em outros domingos, eu quero silêncio de voz e de sons. Fico em reverência com as ervas ou um livro que me leva para viagens além de mim. Sei que você também deve ser assim. Talvez seja por isso que nossas saudades se unem em torno desse carinho de outrora e que não sabemos de quando. Como eu disse antes, tem coisas que não têm explicações. E nem precisamos delas. Basta sentirmos e pronto.

Por aqui, o barulho que ecoa são dos trovões que é um dos sons que me fascina, e já sei que em poucos minutos os pingos da chuva que se aproxima me tocará como se fosse uma melodia. O vento já traz os primeiros sinais em gotículas que fazem com que o petricor – o cheiro da chuva – exale em meu quintal e eu me despeço com um abraço carinhoso.

Mariana Gouveia

infinitamente · Mariana Gouveia · Todas as ruas

Qual é o presente mais memorável que você recebeu?

Ganhara a caixinha de música da madrinha que vinha vez ou outra para visitas. Dava a bênção. Olhava encantada para o papel de presente que sempre tinha coraçõezinhos ou borboletas – um dia ouviu a madrinha dizer à mãe que ela gostava mais da embalagem do que do presente – por isso na hora que viu a caixinha de música mostrou alegria, mais do que sentira. Onde se viu uma caixinha de música sem a bailarina?

As borboletas sim, pareciam saltar do papel como se dançassem ao menor toque na corda da caixinha. O som que saia da caixa era como se fosse um empréstimo da natureza e adoçava suas vontades da vida. Podia ver a música nas folhas, nas aves, no rumor do vento… não importa onde estivesse podia ouvir qualquer música. E podia dançar feita bailarina.

Ainda hoje, depois de tanto tempo e com a caixinha muda guardada na mala azul, já sem os cadeados de antes, ainda pode ouvir a música.
A madrinha se foi há tempos. Quando se transformou em menina-moça-mulher a madrinha já não vinha mais. Foi se distanciando com o tempo e o papel foi desbotando com o passar dos dias. E a música da caixa já parecia ter vida própria e nem precisava mais da caixa pra ser.

Como todos perdem o sabor da infância, ela também perdera numa rua qualquer de uma cidadezinha.
Vez ou outra percorre as ruas em sonhos. Grita. Relembra o primo que dizia que a sina dela era ficar louca a olhar para o céu em noites de lua cheia.

Quando a lua surge, às vezes, teme ainda a profecia do primo. Porém, hoje o que mais teme é a saudade que sente.

Mariana Gouveia
A menina da mala azul que tinha sonhos cor de rosa

Divã · Mariana Gouveia

Sei o papel de cor. 

 Mas não chego para uma história. 
Golgona Anghel

Ph: Pinterest

O amor, ao entrar, foi logo me perguntando:
– Leu o manual?
– E alguém lê o manual? Ninguém lê.
– E os estatutos, leu?
– Estatutos? O estatutos são lidos somente em ocasiões especiais, cujo interessado é o único que não segue o estatuto e só quando ele é prejudicado.

Passivamente, ele senta e desenrola um rol de papel que não tem fim.
E ali, discorreu por horas sobre o decreto que definiria viver um amor e que todas as regras sejam cumpridas e pronto.

– Como pronto? E esse bater acelerado do coração que parece uma bateria de escola de samba? E esse alvoroço de arrepio na pele ao pensar nela? E esse atirar-me do abismo em direção à ela sem saber se há proteção.
– Leia o manual – é a resposta única – Leia o manual. Siga o estatuto.
– Confesso que seguir as regras nunca foi meu forte. Não que seja dada à rebeldia. Mas, sigo sempre o coração.
– Quando se começa a amar, há mais pessoas envolvidas e na maioria das vezes, mais de uma. Nesse caso, você quebra a regra nº 1 : No amor, ninguém pode sofrer.
– Sofrer é inevitável. Faz parte do processo de apaixonar. O amor não pode ser de posse, por isso, as pessoas sofrem.
– Leia o manual. O amor é único em si mesmo e a paixão, efêmera. Está no Artigo II – não confunda paixão com amor.
– E o que fazer com esse sentimento estranho, que encanta, que grita e faz com que a gente sonhe de olhos abertos? E lá de novo eu, ponta a cabeça, como em um trapézio sem rede.
– Que nome se dá a esse sentimento?
– Quando você o pronuncia o nome dela o dia ganha cores, a vida fica mais leve e tudo passa a ter sentido. O nome disso é encantamento e pode ser um passo para o amor. Está no manual. Artigo 3. Parágrafo Único: É permitido se encantar pelo que é belo, pelo que seduz, pela riso e pela poesia de cada dia. É permitido o encantamento.
– Encantamento tem manual?
– Só quando ele se transforma em amor.

E já saindo de mansinho, repete mais uma vez:

– Leia o manual!
– E alguém lê os manuais?

Mariana Gouveia.

Das palavras das cartas · Mariana Gouveia

Em algum lugar além do arco-íris

Luci,

Eu também vi um arco-íris hoje… ainda era manhã chegando e ele engoliu a casa da vizinha num gesto de abraço. Sorri quando vi a cena e quis registrar. Depois, caiu uma garoa miúda e a chuva se foi. Ficou nas trepadeiras as gotas como se fosse um colar de contas.

Eu vi o dia passar leve dentro do segundo dia do ano. Brinquei com o estuque do muro e lembrei-me do seu pai na época em que ele não queria comer. Depois, procurei por nuvens que talvez te servissem de estimação e no fim do dia eu queria te contar uma história bonita…

Vi as aves retornando aos seus umbrais, os cães se estranhando por causa de uma bolinha e a magia do casulo se fechando…

Tinha ainda tanta coisa que eu queria te falar, mas o que ficou em mim nesse dia é o arco-íris abraçando a casa da vizinha.

Mariana Gouveia

Divã

Sem licença

Sem licença

Uma artista não morre! Ela vive para sempre dentro da arte que representa.
Vá em paz, Nélida!
Eu te tomo nos braços, sou tão ansiosa, tão perdida na própria paixão.
Tu brincas comigo, dizes que não tomo jeito, mas tu estás povoado de orgulho do mesmo modo como te povoo de lendas. Eu te enfeito com histórias que ninguém, senão eu, li em ti.
Tu sabes o poema que farei amanhã, a palavra que perderei no futuro se me escapas agora.
Não te autorizo a deixar-me. Ouviste o que eu disse?
Não te dou licença de passear pela terra, de ter um futuro em que eu não esteja inteira.

Nélida Piñon
*imagem: Tumblr

Das rotinas · Mariana Gouveia

*a fabricar tempestades particulares 

Ph: Ziqian Liu

Choveu em uma tarde banhada de sol enquanto eu lia meu diário. Rabisquei algumas palavras mudando o sentido das coisas. Depois reguei as flores que não receberam as gotas da chuva.

Depois de dois convites para sair – que recusei apenas com resmungos – fui andar descalça no quintal enquanto Ed Sheeran tocava no repeat. Às vezes, minha solidão precisa da companhia de canções. Desfiz o naperon de crochê – errei na cor da linha – e recomecei do zero. Já reparou que, às vezes, o zero, é um começo?

Marte em sua melhor presença segue a lua em seu quarto crescente ou seria ao contrário? Fico pensando se é ela que ronda as estrelas em busca de companhia. Aprendi o nome de uma planta que nasceu no quintal sem que eu tivesse as sementes. As sombras invadem as janelas abertas enquanto minha mão fabrica chuvas nos vasos que ficam dentro da varanda.

Guardo as fotografias em preto e branco dentro do diário em uma data preferida. No coração, trovoa. Enquanto penso em coisas que eu gostaria que acontecesse começa a tempestade no interno de mim. Alerta vermelho de explosões vulcânicas na alma.

Mariana Gouveia
*frase do poema de Egito Gonçalves