A minha memória ainda guarda aquele dia. Eu, menina, a viajar para o interior de outro estado em um lugar fora do mapa a procurar meu pai. A estação tinha ar de filme antigo que eu nunca havia visto, mas que já tinha lido sobre. O ônibus me deixou ali durante a madrugada. Fazia frio e o paletó de flanela xadrez feito por minha mãe antes de adoecer me aquecia.
A estação não era o fim do caminho. Era o meio. E o ônibus só passaria por ali no meio da manhã.
As duas pessoas no local me olhavam com curiosidade, mas não sabiam me dar nenhuma informação. A luz fraca do gerador a óleo parecia querer apagar a qualquer momento. Não se via quase nada. Apenas uma luzinha azulada vinda de uma janela a poucos metros da estação. Dali vinha um cheiro bom de café e algo que imaginei ser bolo – só aí me lembrei que havia comido apenas na tarde anterior – e o som de uma guitarra que tocava suavemente.
Caminhei até a janela para pedir ajuda e vejo ele, de olhos fechados – e foi uma das cenas mais lindas que já vi – a tocar. Eu, que crescia sobre o manto da música sertaneja encantei-me com a suavidade da canção.
Me convidou a entrar e enquanto eu contava um pouco sobre minha história e o porquê estava ali foi colocada diante de mim uma xícara de chá e um pedaço do bolo ainda quente.
Parecia que eu o conhecia desde sempre. Orientou-me a voltar para casa. Falou do perigo de uma menina da minha idade sair assim, sem ninguém acompanhando e que iria me ajudar. Elogiou minha coragem de ter chegado até ali. Mas que agora era com ele.
Falou da vida, do blues – o ritmo que era a vida dele – da filha que criava só desde que a mulher morreu. Eu, declamei poesias que eu mesma havia escrito e prometemos fazer uma música juntos – quem sabe, um dia, nas minhas férias escolares.
Pegou meu endereço e logo que o dia amanheceu pediu para alguém me levar até em casa em sua caminhonete azul.
Não sei se foi pelas mãos dele, mas dois dias depois meu pai apareceu com uma carta escrita para mim, com o convite para nas férias visitá-lo e a vida seguiu.
Nas férias seguinte, meu pai me levou lá e dali, desenvolveu-se uma amizade tanto pela música como pelo homem. E naquele lugar passei a viver dias de sonhos. As férias eram aguardadas como se espera pelo domingo. Enquanto isso, trocávamos cartas onde eu traduzia as canções que ele gostava.
A vida me levou para longe dali. Algumas vezes, foi possível voltar. Em outras, enviava cartas com presentes para retribuir a atenção de um avô postiço.
Ganhei instantes lindos junto com ele. Dançávamos no campo com as cores de um outono dourado.
Recebi a carta dele monitorada de ausência. As letras miúdas como se fossem desenhos. Todo mundo devia ter essa letra – pensei. Devia ser decreto – Na carta falava que lá tudo continuava igual. Parado no tempo. O ônibus passa agora três vezes ao dia, porque as crianças cresceram e formaram famílias e foi a única coisa que mudou. Não. Ele se enganara. Agora havia também ao lado da estação uma antena enorme que levou modernidade para o lugar e graças a essa antena – que ele odiara no início – podia ouvir minha voz através do telefone da filha.
Mas da janela, a estação que ele vê é a mesma. Era outono quando escreveu. Descreveu o campo em tons dourados igualzinho como quando fui lá pela última vez. E igualzinho eu me lembro e tenho em fotos.
Falou que a música ainda alimenta a alma dele é que a vitrola que eu dei a ele funciona como se fosse nova e que foi o melhor presente da vida. Que quando o carteiro entregou o pacote com o LP que faltava do B.B. King ele quase abraçou o moço. Só não o fez porque iriam interná-lo. Mas que ouviu tanto que a filha reclamava da repetição e que não só ela como os vizinhos, até os mais distantes sabiam de cor e salteado todos os acordes.
A carta tinha o perfume de lavanda no papel. Era uma loção pós barba. Foi descrevendo letra após letra a solidão das tardes e de que pensava em mim com emoção.
Por fim, me disse sobre não deixar de ouvir a música nunca. E que eu plantasse flores sempre.
A resposta foi uma carta da minha maneira com um LP encontrado no sebo, mas descobri hoje que ele não pode ouvir nem ler. Havia partido para uma rota que não sabemos qual, mas sei que continuará seu caminho tocando blues e cada vez que eu ouvir I Believe To My Soul ele estará comigo.
Mariana Gouveia
Texto publicado na Revista Plural Blues
Scenarium Livros Artesanais
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