Do lado de fora · Scenarium Livros Artesanais · Via Solar

Fevereiro, quarta

5:30
desassossego com este sol que se esparrama nos umbrais das manhãs
que entram pelos meus olhos e não cansam de olhar este céu
de promessas

espero a poesia, como meu pai espera a chuva para plantar feijão
sempre uma ode ao carpir, plantar, regar, colher – comer e partilhar
– corpo – existência e poesia
– é fome
– é sustento dos dias

Nirlei Maria Oliveira
Agenda 2023
Scenarium Livros Artesanais

Do lado de fora

Lembrei-me de ti hoje

Ph: Pinterest

Lembrei-me de ti hoje
E por mais que eu queira
Não consigo esquecer-te
Porque ainda ouço
As nossas canções
As que tu fizeste para mim
Amava-te sem que soubesses
Mas sabia que me amavas também
Isso eu via nos teus olhos
Sempre que olhavas para mim

Luís Rodrigues Lobo
In, Dádivas

Divã

Sem licença

Sem licença

Uma artista não morre! Ela vive para sempre dentro da arte que representa.
Vá em paz, Nélida!
Eu te tomo nos braços, sou tão ansiosa, tão perdida na própria paixão.
Tu brincas comigo, dizes que não tomo jeito, mas tu estás povoado de orgulho do mesmo modo como te povoo de lendas. Eu te enfeito com histórias que ninguém, senão eu, li em ti.
Tu sabes o poema que farei amanhã, a palavra que perderei no futuro se me escapas agora.
Não te autorizo a deixar-me. Ouviste o que eu disse?
Não te dou licença de passear pela terra, de ter um futuro em que eu não esteja inteira.

Nélida Piñon
*imagem: Tumblr

Do lado de fora · infinitamente

*Ikigai

Ikigai é um termo japonês criado para dizer a razão de existir.
Os japoneses acreditam que todo mundo nasce com um dom.
Uma coisa que você sabe fazer. Seu potencial.
Você descobre que você sabe fazer aquilo. E que você gosta de fazer.
Isso se transforma em uma paixão.
E se você se dedica muito à sua paixão e você desenvolve uma forma
de ganhar dinheiro. Isso se torna uma profissão.
Mas, você tem que encontrar uma forma de fazer com que o mundo precise do que você faz, ou pelo menos, uma grande parte dele.
Essa é sua missão.
Quando você descobre a sua missão você descobre a sua razão de existir.

Ken Mogi



1992.
Você encontra o Botafogo. Não é clichê. Você não escolheu.

1999.
A todo custo você tenta escrever. Mas, é impossível, talvez devesse fazer outra coisa. Com 11 anos você descobre que fracassou pra isso.

2003.
15 anos. Você sonha com o Rio de Janeiro. Quer sair, desbravar o mundo. Tá no colégio, as coisas na ponta do lápis. Um sonho, de criança né? Como eu vou parar no Rio de Janeiro? Talvez de férias. Talvez indo de ônibus. Nunca vou pisar em um avião

2008.
20 anos. Você num ônibus e sai da casa dos pais. Deixa pra trás a família, o conforto, a paz. Você não sabe o que vai rolar. Todos esperam que você falhe.

2009.
Você faz do poker teu sustento, decide suas horas, aprende a desafiar os outros, você contra os outros. Você contra você.

2009.
Sala fechada. Entrevista. Você descobre que seu próximo salário é de R$ 465,00. Vai trabalhar debaixo do sol, dia todo. Cidade nova, Rio de Janeiro. Seu aluguel é R$ 250,00. E você vai. E chega em casa sem conseguir respirar, o cansaço te leva tudo.

2012 – 2016.
Você não entra no avião uma vez, mas várias. Infinitas vezes. Aprende a voar. Não, esquece, é figura de linguagem, não pula de canto algum não. você realmente sai do chão e conhece lugares, Curitiba, São Paulo, Porto Seguro, Brasília, você só descobre que tem o mundo. Pessoas.

2016.
4 anos em Cuiabá, após um retorno inesperado. demitido. Um erro, mas será que cometi ele?

2018.
De volta ao Rio. 6 anos longe. Mas tua alma não sai daqui. Teu coração se encanta com o ritmo, o caos, a bagunça, o trem lotado. (Mas você não precisa andar de trem lotado todo dia).

2021.
Sozinho. De frente pra igreja, no frio, na doença, na luta, você e você mesmo. As tatuagens surgem, o brinco, você percebe que ainda não confia em você mesmo.

2022.
Não consegue enxergar de onde veio. Da luta. De quanto errou, achando que podia ser perfeccionista, mas só aprendeu quando errou. Você não percebe que o sonho de voar, que usar o baralho pra você, que se mudar, que morar sozinho, eram teus objetivos mais impossíveis. E ainda acha que não pode dar o próximo passo.

30/11/2022.
Você percebe que tá só começando e vai fazer muito mais.

Lauro Gouveia
Rio de Janeiro

Do lado de fora

Percebi que te amo

Quando eu vi que bastava
Seu atraso
Para ouvir desaparecer em mim.
A indiferença
Para temer que você não viesse mais.
Percebi que te amo
Quando eu vi que bastava
Uma frase sua
Para fazer com que uma noite
Como uma outra
Começasse por encanto a iluminar-se.

Luigi Tenco
*Imagem: Johnny Jr

azul em qualquer céu. · Do lado de fora

Eduardo e Mônica

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(… ou você & eu)

ele dava aulas de sexo tântrico nas noites de lua cheia e ela bordava poesia em bolinhas de sabão.
não estava escrito nas estrelas e nem se tratava de um desdobramento místico de vidas passadas. ainda assim se encontraram numa encruzilhada da cidade sem esquinas… ele comia um filé a parmegiana mal passado acompanhado de alguma bebida inofensiva qualquer; e ela usava um chapéu de coco e rodava a via láctea inteira para formular uma frase simples – ela sempre teve um certo fascínio pelas figuras de linguagem!
rebeldes e inconsequentes, não cruzaram as informações do mapa astral com o resultado da numerologia dos nomes de seus antepassados. ignoraram os signos do zodíaco; sequer passaram a vista na página onde o colunista traçava a orientação de conduta. nas cartas do tarot e na vidência das ciganas não buscaram seu destino. declinaram de mandingas e não tomaram conhecimento algum de uma possível incompatibilidade de seus tipos sanguíneos.
apenas se deixaram levar pela inspiração de quereres que rendeu o encontro. e tendo ou não razão as coisas feitas pelo coração, plantaram no fundo do quintal de casa uma árvore de sonho, que espalhou mudas pelos cantos tantos do terreno inteiro… e além…

Keila Tavares (com uma bela galeria aqui)

Das palavras das cartas · Do lado de fora

Das cartas que recebi.

Mari,

Quando me mudei para essa casa, meu guarda-chuva tocava as árvores da rua. Nesses quase vinte anos, chegaram na altura adulta e mal vejo as copas.

Tenho muitas histórias com as árvores da minha rua, uma vez, cuidamos de uma goiabeira quebrada. Colamos com seiva e fizemos ataduras, mas ela se recusava a sarar. Pensamos num plano de roubá-la numa noite escura, mas um amigo advogado nos advertiu do perigo que há em salvar, poderiam chamar a polícia ao ver as gravações da rua e assistimos ao seu fim silencioso.

E ninguém percebeu que a menina esguia que já estava na inflorescência, havia morrido.

No verão de 15, um raio partiu minha figueira. Parecia uma nau com seu rangido quando atraca.

Sofri com o vazio que ficou.

Dessas que vê na fotografia, são sobreviventes: muitas caíram ao longo desses anos, parecem não gostar das estações das chuvas.

Outro dia percebi que fizeram um coração com iniciais em uma paineira. Isso me doeu tanto quanto fosse tatuada em mim um amor que nem dura a infância de uma árvore.

Mari, já te contei que vou virar árvore quando me encantar?

Carta e fotografia de: Luciane Ricieri

Divã · Do lado de fora

O teu poeta mistura lilases para avivar o que fala.

Ph: Natália Drepina

Na terra onde deságua as almas mortas
Misturam-se memória, desejos e a chuva que tudo lava,
Onde não há luto o anseio floresce,
A terra revolta produz mais
A primavera agasalha o inverno,
Em algum lugar há um café passado esperando por nós dois,
Um bolo de aniz, uma banheira de açucena
Que pena que o teu caminho não passa por aqui
Quando éramos crianças, na casa mais da esquina moravas
E eu tive medo.
Medo de não ser seu, de que um dia esse malefício tomasse o meu coração
Leio muito à noite e viajo sempre no verão,
Mas fora isso eu não tenho rotinas, tenho medo de ficar paralisado,
Do beijo ficar no meio do caminho
Não podes dizer sequer das estimas, ou das lastimas que o hábito aprisiona
O de me desconhecer em tudo que é tão usual
Não pus o teu retrato na parede e nem cultivei manhãs de sol
E as árvores me cobram as tuas costas dispostas nelas
Os grilos guardam os seus cantos para ti,
Os rumores das águas se perdem em algum ponto do rio
Quando os teus pés foram embora o caminho se desfez
Uma sombra medra sob esta rocha que à tua espera
As ervas de mato me dizem da tua sombra a caminhar sobre elas,
A natureza me pergunta quando tu voltas
Tudo te distingue e eu com esse sorriso parado,
Ai de mim que nem sei o que dizer a elas

Charles Burck

Divã · Do lado de fora

ser a laranja na tua sede

a redonda palavra
na tua boca
onde o silêncio sopra
segredos
inteiros
rebeldes securas
a cobrir-te a pele.
e nos dias pardos
inventar a luz
sacudir poeira
e deixar em ti
o brilho do orvalho
das manhãs

Rosa Maria Ribeiro
Ph: Irina Kotova

Divã · Do lado de fora

Navegar…

no espaço de um segundo. Ser pássaro, ainda que peixe.
Mergulhar nas nuvens.
Voar no mar.

Joakim Antonio
imagem: Anka Zhuravleva