Querida Doralice,
Hoje te escrevo – não mais escondida – e nem é para saber de você, porque sei que alma livre como a sua, onde quer que esteja… voa! Tal qual a pipa do menino da rua de cima que corre descalço, olhando para o céu, para ver onde cai. E ele é tão ágil, que ganha dos meninos mais velhos. Acredita?
Quando em um fim de tarde vejo essa cena, lembro-me de ti, nas ruas. Você flutuava! E meu olhar de admiração era porque eu queria ser igual a você. E quando atingi a idade em que podia saltar no abismo e enfrentar os olhares dos outros sem me punir, eu fui você. Demorou para ser assim, mas aconteceu e foi maravilhoso.
Você serviu de exemplo. Me lembrei de seu sorriso que mudou tudo na vida – mesmo que por pouco tempo – das mulheres do meu lugar. Ainda hoje, ouço algumas lamentarem o que poderiam ter sido, não fosse o medo.
Acredita que ainda usam a fé como pretexto de calar mulheres? Subjugam a roupa, o modo de andar… só por ser mulher??
Resolvi ser o fator da mudança da minha casa, da minha rua e, por fim, do lugar que me coubesse. Descobri que sou tão imensa que posso ocupar qualquer lugar e ser direção… de meninas, de mulheres e até de homens… para que eles saibam – ainda falta tanto – o valor da mulher. Seja ela de alma livre ou não. E quando penso nisso, reverencio o seu engenheiro que se descobriu vivo porque a conheceu. Antes, ele era uma figura em busca de si e que bom que você o ajudou a se encontrar sendo porto e barco. Lindo isso!
Confesso que abusei dos olhares dos homens, da inveja das mulheres, da admiração de algumas pessoas, das raivas de outras e aprendi a enfrentar o que era adverso. Mesmo com a minha mãe se importando com o que as outras mães falavam. Cheguei a ver o orgulho estampado nos olhos dela quando fui viver minha vida. Acho que era o que ela desejava – secretamente – fazer.
Olhando o tempo e o baú onde guardo as cartas, vejo que ainda é a dona Coisinha de tempo atrás. E duvido que isso será diferente em algum momento.
Certas coisas são para sempre, não é mesmo?
Quando eu penso em você…o vermelho carmim de suas unhas vem à cabeça. O decote generoso e o andar sensual que atiçava os olhares que te seguiam e amaldiçoavam. Sabemos que era inveja pelo que apenas os olhos podiam tocar.
Eu pintei o cabelo de vermelho, para desespero da moça que mexia a tinta no recipiente, e que cuidava dos meus cabelos longos desde a adolescência – e se você não gostar? – ela disse. Tentando me fazer mudar de ideia. Eu dei de ombros e disse, recorrendo ao seu tom de voz, pausadamente: a gente raspa. E eu achei que os olhos dela fossem saltar da cara. Por dentro, eu ria.
E por muito tempo, naquela rua, eu fui vitrine e a culparam pela menina indisciplinada que me tornei. O padre – a pedido de minha mãe, me fez contar não sei quantos mil rosários e rezar não-sei-tantas ave-marias… confesso que, mentalmente, cantava Audislave. Amém!
Você me moldou e libertou das normas da minha mãe, que desistiu de me domar. Um dia – nos atrás – eu a ouvi ela dizer que você era a culpada por minha rebeldia. Mal sabia ela que algumas pessoas já nascem livres e basta apenas que alguém nos dê um pequeno e significativo empurrão. Ninguém tem culpa quando a vida se resume a uma pessoa. Ou você é livre ou é refém. Seja de normas, regras e leis impostas por “pessoas de bem”.
No limiar da força que a liberdade nos traz, o estoque da força vem da repressão. Confesso que não temo mais o que pensam de mim e nem de como me veem. Porque, no final das contas, o engenheiro inglês estava certo: o problema nunca esteve com você e sim nas pessoas que se acham no poder de julgar alguém.
Te abraço,
Mariana Gouveia
Carta publicada no Projeto Coletivo O casarão
Scenarium Livros Artesanais