Das palavras das cartas · infinitamente · Mariana Gouveia

Para além dos campos de flores amarelas

Não sei, minha mãe, o que escondeste nas sílabas, 
que violenta neblina lá guardaste, 
mas não esqueço a euforia do espanto, 
essa festa distante onde chamava por ti devagar, 
sempre tão devagar. 

José Oliveira Fernandes

mãe,

como eu conto esses dias que atualmente passam tão rápidos? Mesmo que eu não queira, maio me traz o dia que seria seu aniversário. A folhinha arrancada logo cedo vem junto com as memórias desse dia em anos anteriores – tantos, que às vezes, esqueço quantos são.

Sabe, mãe, são mais dias sem você do que com você. E não podia nessa data ficar sem o parabéns para você. Sete filhos já dava uma festa ao redor da mesa, lembra? O bolo de milho, de puba e os biscoitos de polvilho, o suco de tamarindo, servidos na mesa de madeira debaixo do pé de sete copas e os campos enfeitados de flores amarelas. Eu sempre dizia que os campos se enfeitavam para você, dentro de maio, como se com isso te presenteasse com o dourado a se estender até se misturar com o verde das matas.

Acho que você se orgulharia de mim, mãe… tenho conseguido me sair bem, mesmo quando alguns dias ficam difíceis de gerir. E mesmo quando os olhos se espremem em lágrimas, logo tudo passa e sigo em frente. Ainda falo com você também, mesmo com 42 anos de ausência. É tão presente, que às vezes, parece que está logo ali, a cuidar da horta, dos bichos, das roupas na bacia.

Gostaria que você soubesse que ainda sigo alguns rituais que você nos ensinou. Também vivo fazendo artes como as que você fazia e seu neto, mãe, já é um homem lindo. A vida continua mágica, apesar de tantas coisas estranhas causadas pelo homem e nesse dia, te reverencio com as mãos justapostas e te abraço com meu coração.

Feliz Aniversário!
Mariana Gouveia

6 on 6 · Das palavras das cartas · Mariana Gouveia · Scenarium Livros Artesanais

6 on 6 – Caixa de fotos

Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim eu enxerguei a ‘Nuvem de calça’.
Representou para mim que ela andava na aldeia de
braços com Maiakowski – seu criador.
Fotografei a ‘Nuvem de calça’ e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
mais justa para cobrir a sua noiva.
A foto saiu legal.

– Manoel de Barros, em “Ensaios fotográficos”. 

Bambina mia,

pensei em não escrever a missiva costumaz nesse 6 de maio. Mas, depois, pareceu-me que faltava algo mais e lá vou eu nesse monólogo com você nessa tarde/noite de céu com nuvens que parecem bolas de algodão. Hoje, realmente pareceu outono nesse fim de tarde, revirando minhas caixas de fotografias para registrar o projeto. As lembranças transformaram minha tarde em nostalgia.

Sabe, é engraçado olhar o passado através das imagens em papel de fotos, algumas recortadas para um scrapbook que nunca terminei. Uma das únicas fotos que minha mãe tinha e meus irmãos mais novos ainda de chupeta me levou para tempos atrás. Com você, eu posso falar desse sentimento de ternura que abranda um pouco os dias difíceis. Embora você não goste muito da palavra saudade é ela que me acolhe nesse momento.

Confesso que fazia já alguns meses que eu não mexia nas fotografias, mas eu gosto desses momentos onde o instante ficou gravado como único. Ainda me recordo completamente do dia dessa foto acima. Meu pai arrancava o açafrão para temperar o frango do almoço. Era férias e eu buscava o calor do afago dele. O quintal ainda estava sendo formado. A pequena árvore era o pé de canela que ele mesmo plantara e para além de onde não saiu no ângulo, a horta.

De repente, olhando as fotografias percebo que grande parte das pessoas ali já não estão mais aqui. Só as lembranças na memória viva dentro do peito. E a sensação do amor sentido e vivido.

E quando abro a caixa dos registros do filho fico admirada pelo tanto de coisas vividas. A formatura, a crisma, as viagens feitas por ele e das histórias contadas através de cada close… Nossa, bambina, agora me pareço com a minha mãe que abria o álbum de fotografias e a caixa de monóculos cada vez que uma visita chegava em casa.

Escureceu e a noite morna se aproxima… Já é hora de juntar as lembranças, guardar as caixas e mandar as fotos via mensagem para os irmãos e o filho. Recordei de tantos instantes e você é a culpada por isso. Grazie!

Bacio,
Mariana Gouveia
Projeto Fotográfico 6 on 6
Scenarium Livros Artesanais

Mariana Gouveia

Trapézio

 

Estar com ela tinha a sensação plena do voo.
De repente me pediu pra cantar. Uma musiquinha de criança…
Não cantei, ela fez charme e mesmo não dedilhando canções a melodia invadiu espaço dentro da alma.
De novo a sensação do voo, água na boca. Quase turbilhões de borboletas na barriga.
E foi riso…e mergulhei sem rede. Não tive medo. Me joguei.
Sei lá. Não sei que nome dou pra essa coisa na barriga que envolve e que devora, que tal qual criança na noite do Natal a espera do pacote abrir.
Me abri. Os braços, quase alados, quase asas. Indo, vindo. O espaço era meu. Não. Melhor, o espaço era nosso.Amplo. Lá embaixo, picadeiro sem rede. Mas o amparo era nítido.
Era colo.
E assim, a magia se faz e a gente voa junto. A respiração corta e a respiração vem.

De um pequeno instante,a sensação agradável de estar ali, invadindo espaço, braço.
O palpitar do coração na melodiosa canção do amor e a plenitude de dominar o céu.

Quer saber? Até hoje  subo no estendal de roupa onde meu coração ficou preso.

Foi o primeiro delírio de um voo rasante de uma provável série de outros que virão. Aliás, acho que viverei nesse trapézio constante em alucinógenas doses de me entregar nos braços dela.
Quero andar nesse caminho de céus coloridos, com borboletas de cores variadas a voar suavemente em torno dos meus pés.
Em volta tudo lembra magia e é bom, nem é preciso fechar os olhos.
Exercito uma insanidade sutil, pequena, suficiente.
Eu queria que eu só existisse pra essas coisas e pro amor. Daquele momento de borboleta me peguei a derramar do limite das asas, uma chuva de flores.
O vento me emprestou um movimento e em festa soprou com gosto um domingo de abril.

Foi como se você estivesse aqui e coubesse toda nos meus braços e voasse em mim…

Mariana Gouveia
Art: Larissa Marques

Divã · Mariana Gouveia

Loucure-se

loucure-se

Diziam que sofria de loucura crônica – alguém sempre fazia questão de ressaltar isso – nunca fez nada para desmentir.
De vez em quando, tomava lucidez fora de hora.
Tinha medo de não viver as histórias de amor que lia nas bulas disfarçadas de livros.
Ria quando lembrava dela. A buscava nos romances que lia. A cantava nas canções de amor.
Lembrava do dia em que estivera nos braços dela.
A madrugada, a partir daquele dia, passou a ter sentido. E as coisas ganharam o encantamento que eu via nos olhos dela.
Um dia, a loucura materializou-se em gestos e um mês qualquer tornou-se um de um vazio profundo.
Uma mistura do enlouquecer e da busca, sintetizou a falta.
Nunca mais soube dela. Mas, todos os dias lê as cartas, o horóscopo, o tarô…
Procura uma cigana que leia em sua mão a doce felicidade da volta.
Na mão, a linha do destino liga sua vida à dela.
Escreve poesias para não enlouquecer de saudades e cuida do jardim, apenas por desacato à flor.

Mariana Gouveia
*imagem: Tumblr

Mariana Gouveia

Por aqui a lua jantou com Vênus

Por aqui a lua jantou com Vênus

Vem quase tudo
do que tu dizes

é como ter a respiração acelerada.

Jantei sombras de sol,
luas de metamorfose.

Bebi…

Achei lindo beber lua
e até me embriaguei aqui.

Estou a cata de inspiração

pra ver se te encontro e do que tu te alimentas;

o mel nos teus lábios…bebi.
Tudo em ti  me sabe
a sal
e é doce, doce

como a saudade
e eu sorvo cada sabor
da delicadeza dos instantes.
É nos seus braços que me inspiro.
Deve ser por causa do eclipse solar.

Por aqui a lua jantou com Vênus
numa clepsidra de sonhos.

Sonhei contigo.
Seus goles me sorviam

e passou depressa.
Mas ficou cá dentro
uma imagem tua,

aquela imagem
que não esqueço.
Não quero esquecer

e no toque lento de tuas mãos.
Árida estou e ardo
e sou
todos verbos.

Verbalizo,
úmida,
sou gutural, estaminal.

Te vejo,
as minhas mãos imitam as tuas
passam em mim iguais.

Aperta-te…

Para eu sentir
a marca
procurando o tudo e nada.

O teu corpo
se funde no meu,

a minha morada tardia
e eu que ardia de desejos
no deserto de concreto,

tenho sede.

Não sei nada de AMOR.

A minha boca já sabe a tua
e cresce
uma nascente de água…

tua estaminal.
É no céu da tua boca, meu paraíso

verbal,
mas tão real que te sinto
e vou ao delírio.

Quente como o areal
no sol

que eu: ardente desejo
que me deu

sabes de amor agora?
Sim!
Um sentimento,
pequenas conversas,
várias nuances

que fica.

Quero tua resposta.
Tu és meu coração
perdido.

Eu acho-te
no repetir

dos momentos,
dos meus
encantos
mesmo quando
acabo
e quem disse que é preciso estar juntos pra estar perto?
Acabo e ardo

Mariana Gouveia – Das delicadezas dos Instantes

Mariana Gouveia

as lembranças me chegam sempre em dias tão vazios

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As lembranças sempre me chegam nos dias vazios. Era eu em tuas fotografias. O vento uivava no morro e ali, a vida parecia cor de rosa.
Te mostrei a florzinha azul. Falei da delicadeza do lugar. A aliança tinha ar majestoso na mão. Você tremia.
Não era chuva, mas tinha gotas a cair do céu em uma garoa que não era do lugar – ou pelo menos, eu nunca tinha visto – e você se deslumbra com a visão do céu ali. Quase tocamos as nuvens com as mãos. O dia era para ser feito de magia.
A timidez dominava seus olhos. Eu te via como a rainha do lugar. Era eu, indivisível olhos de amor.
Falei do mar que você me trazia e que ali, já havia sido um oceano. Era história contada nos livros. Onde as flores azuis nasciam – sua cor – foram encontrados fósseis marinhos. Um, que parecia estrela – eu vi – e quase pulei de alegria quando te contei.
Você falou da estação que sobrevivia os dias e de como era intenso o lugar.
Tenho todas as estações na mão. Em mim, tudo era primavera quando você estava.
Seus olhos se perdiam na imensidão do tempo. Passou-se tanto depois disso.
Lembro que no fim do dia o sol apareceu. Eu te cantei uma canção e fomos embora achando que a vida era isso.
Hoje, num dia vazio a saudade abre a tampa das lembranças e eu deliro – deve ser a febre – o dia parece igual àquele.
Já não é mais primavera em mim, mesmo dentro da estação das flores e a florzinha azul, ficou extinta e nunca mais nasceu.

Mariana Gouveia

Mariana Gouveia

Tríplice

trípliceAntes mesmo de te encontrar
eu já sabia como seria

Quando te encontrei
era como se antes já te vivia

Ainda assim, em mim
é tríplice
na alma
no toque
no pensar.

Mariana Gouveia

De todas as estações · Mariana Gouveia

Sobre(vivência)

 

Inaugurava em mim o outono
e a voracidade dos dias.
Mora dentro de mim as tuas digitais
e os caminhos que percorro em tua pele
a folha que cai enquanto o corpo treme
é preciso sobre(viver) dentro das estações.

Mariana Gouveia

infinitamente · Livros · Mariana Gouveia · Scenarium Livros Artesanais

Das metades de tantas, (eu) inteira

Ph: Steve Richard

Inventou a si mesma
no pretérito imperfeito
cada vez que tocava
sem jeito seu corpo
via as palavras
da mãe, da irmã
o pecado em palavra,
dedo em riste
o incômodo das que eram submissas


– nunca quis isso para si –
sabia que cabia dentro dela
as promessas de prazer
como se fosse dia de chuva

Sabia-se única
e ainda assim sentia
um abismo de sujeições. 
Um céu fotografado em dia de sol
tal qual nuvem dissolvida
em várias formas
com o carimbo da ancestralidade
na pele
um marco geodésico das outras
de sua linhagem, o sangue –
feito nuvem vermelha
em dia intenso.

Mariana Gouveia
Coletivo de Poesias Mulher de Nuvem
Scenarium Livros Artesanais

do verbo voar · Mariana Gouveia

e o silêncio se fez de vento no varal 

Quando rasguei o nome no peito…Tirei do ventre a palavra voo e chorei pelos números de nomes que voaram entrelaçados dentro da ausência vivida. Nem era dia especial e o silêncio se fez de vento no varal e as esperas aconteciam e a gente sabia que não ia chegar. Algumas partidas acontecem como voos de pássaros ou como pouso em um dia de silêncio.

Mariana Gouveia