do verbo voar · Mariana Gouveia

e o silêncio se fez de vento no varal 

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Quando rasguei o nome no peito…Tirei do ventre a palavra voo e chorei pelos números de nomes que voaram entrelaçados dentro da ausência vivida. Nem era dia especial e o silêncio se fez de vento no varal e as esperas aconteciam e a gente sabia que não ia chegar. Algumas partidas acontecem como voos de pássaros ou como pouso em um dia de silêncio.

Mariana Gouveia

das coisas breves · Mariana Gouveia

Dos mistérios das coisas

Vi um céu sem estrelas no mesmo dia em que uma sonda seguiu viagem rumo aos anéis de Saturno. A flor tão pequena ficou gigante diante da vida miúda. E a noite alguém falou sobre o mistério das coisas. Arranquei as ervas daninhas do quintal e começou de novo o processo de plantar. Lembrei -me da colheita e de como as sementes fazem diferença para colher as flores.

Mariana Gouveia

das coisas breves · Mariana Gouveia

Houve um imprevisto na manhã desavisada de silêncios.

 Isso foi quando uma estação invadiu a outra como se tudo fosse um reencontro. Os cães se refugiaram no quarto e nem um pássaro cantou no quintal. A garoa beijava as folhas como se fossem íntimas e o vento trazia aromas de casas vizinhas. Na rua, apenas eu e a luz difusa do poste em um pisca e apaga sem fim.

Mariana Gouveia

azul em qualquer céu. · Das palavras das cartas · Mariana Gouveia · via lunar

Para memórias futuras…

Su, minha menina nuvem,

confesso que vou guardar essa noite, essa lua, essas nuvens em gavetas para memórias futuras. Foi ontem, tudo isso, e você deve saber o momento. Estou em um tempo passado e muitas vezes, esqueço esse fuso de uma hora a menos.

Mas, para que saiba o que senti e de tudo que meu céu, nesse quadrilátero dos muros que o rodeia tem, guardo em palavra, escritas sob um céu, de um lado, estrelado e ao centro, uma lua belíssima – cheia – e quis te mostrar.

Você sabe bem que a vida é esse afago de alma, de lembranças, de cheiros… eu moro tão longe do mar e nesse momento, nesse meu desaforo de fuso, o mar veio junto com a lua, as nuvens e uma brisa que nem tem cheiro de rio – mas de mar mesmo – ruas abaixo do meu lugar.

Sorvi o chá que fiz a pouco. Meu pé de capim limão está vibrante – culpa das chuvas dos últimos dias – o aroma das flores do alho e que nem cheiram a alho invade essa noite de lua cheia e há cheiro de bolo assado na vizinhança. A minha vizinha da direita faz delícias a essa hora da noite – culpa do trabalho – e de madrugada. Um dia, conto mais sobre isso.

Sabe, Su, há um silêncio no quintal. Até os grilos calaram… e vi, no canto do lado do sul uma luzinha de vagalume – seria impressão? – e a sombra, quase vulto, de Chiquinho dormindo no varal perto de mim…

Vejo vultos logo para além das ipomeias e sons de folhas caindo e as asas de um morcego – recém visitante por aqui – que assusta o meu amor – num vapt vupt que faz ele soltar impropérios que nem ouso repetir. Ele é geminiano e tem medo dos vampiros… vê se pode!! Fecha as portas e janelas e fica me rondando aqui fora, como se o bicho fosse me esvair em sangue… logo ele, que odeia ver o líquido vermelho jorrando – seja em filmes, novelas, e cortes… mesmo os pequenos – fica como se fosse me proteger…

Mais uma vez, rodeio o pescoço com os olhos no céu… as nuvens se dissiparam. Dizem que pode chover a qualquer momento, mas já vi a moça da previsão errar tantas vezes, que meu sopro de ar vai para essa carta para que você guarde para memórias futuras, de uma noite em que eu te vi no céu do meu lugar, brincado de lua, enquanto você se graduava em outro momento, de um céu, do seu lugar.


Beijo meu,
Mariana Gouveia

Afetos · Livros · Mariana Gouveia · Scenarium Livros Artesanais · via lunar · Via Solar

Andarilha

Ph: Lauren Treece

E eu que sempre fui Sol
… amanhecer
Olho para o céu-noite
E aponto estrelas
– possíveis mapas –
Fecho os olhos perdidos
… para que a Rota
Esteja certa!
E quem se perdeu (de mim)
Encontre o caminho
Para dentro do meu peito
Onde o coração
– feito ninho avisa que é possível
nascer outra vez

Mariana Gouveia
Coletivo de Poesias Andarilha
Scenarium Livros Artesanais

Livros · Mariana Gouveia · Scenarium Livros Artesanais

De renda e de poás

Eu nunca fui mulher de seguir as tendências da moda. Gosto de listras, de xadrez, do vermelho e de poás e não sou do tipo que usa maquiagem. Eu até tentei, mas não me entendi com as cores. Fiquei apenas com o batom que uso vez ou outra. Mas com os meus cabelos, o papo é outro… Já foram castanhos, loiro, vermelho em várias tonalidades, cobre… e o branco natural – em transição.

E quando meus cabelos começaram a cair, devido a um tratamento, eu finalmente entendi a minha vaidade. Não foi fácil vivenciar o processo da queda. Mexeu muito comigo. Mas eu superei e optei por mantê-los curtos e não mais pintá-los.

E vieram as críticas…

Feitas em sua maioria, por outras mulheres, que fizeram questão de fazer suas considerações – tão cruéis quanto a doença que atingiu meu corpo. Mas para quem venceu um câncer, o que são meia dúzia de vozes contrárias? Levantei a cabeça, equilibrei os ombros e dei o meu poderoso grito – imitando a personagem de Tomates verdes e fritos – e saí pisando com as pontas do salto imaginário por aí.

      É muito bom esmagar cabeça de cobra
Eu recomendo.

Aposto que é o que Janja – nossa primeira-dama – faz, ao ler as críticas direcionadas a ela. Durante a posse do presidente Lula, ela apareceu com uma roupa feita com crepe de seda vintage, tingida naturalmente com caju e ruibarbo, e bordada com palhas brasileiras.

Recordei a minha infância na hora, quando minha mãe tingia os tecidos com o que catávamos na natureza e aplaudi todas as referências brasileiras, minhas e de tantas outras mulheres. Elegância não tem relação com estilo, como querem nos fazer acreditar. Trata-se das nossas atitudes e personalidade; algo que sobra em Janja, alheia a protocolos e que já disse se vestir com o que se sente bem. E que falta em muitas mulheres, que deveriam fazer o mesmo que eu fiz: dar um grito de independência a la Evelyn Couch. E se você não a conhece, é sinal de que está gastando muito tempo com a vida alheia e deixando a sua, de lado.

Mariana gouveia
Coletivo de Crônicas (In) discreta
Scenarium Livros Artesanais
Organização – Roseli Pedroso

Das palavras das cartas · Livros · Mariana Gouveia · Scenarium Livros Artesanais

Carta para Doralice aos cuidados de d. Coisinha

Querida Doralice,

Hoje te escrevo – não mais escondida – e nem é para saber de você, porque sei que alma livre como a sua, onde quer que esteja… voa! Tal qual a pipa do menino da rua de cima que corre descalço, olhando para o céu, para ver onde cai. E ele é tão ágil, que ganha dos meninos mais velhos. Acredita?

Quando em um fim de tarde vejo essa cena, lembro-me de ti, nas ruas. Você flutuava! E meu olhar de admiração era porque eu queria ser igual a você. E quando atingi a idade em que podia saltar no abismo e enfrentar os olhares dos outros sem me punir, eu fui você. Demorou para ser assim, mas aconteceu e foi maravilhoso.

Você serviu de exemplo. Me lembrei de seu sorriso que mudou tudo na vida – mesmo que por pouco tempo – das mulheres do meu lugar. Ainda hoje, ouço algumas lamentarem o que poderiam ter sido, não fosse o medo.

Acredita que ainda usam a fé como pretexto de calar mulheres? Subjugam a roupa, o modo de andar… só por ser mulher??

Resolvi ser o fator da mudança da minha casa, da minha rua e, por fim, do lugar que me coubesse. Descobri que sou tão imensa que posso ocupar qualquer lugar e ser direção… de meninas, de mulheres e até de homens… para que eles saibam – ainda falta tanto – o valor da mulher. Seja ela de alma livre ou não. E quando penso nisso, reverencio o seu engenheiro que se descobriu vivo porque a conheceu. Antes, ele era uma figura em busca de si e que bom que você o ajudou a se encontrar sendo porto e barco. Lindo isso!

Confesso que abusei dos olhares dos homens, da inveja das mulheres, da admiração de algumas pessoas, das raivas de outras e aprendi a enfrentar o que era adverso. Mesmo com a minha mãe se importando com o que as outras mães falavam. Cheguei a ver o orgulho estampado nos olhos dela quando fui viver minha vida. Acho que era o que ela desejava – secretamente – fazer.

Olhando o tempo e o baú onde guardo as cartas, vejo que ainda é a dona Coisinha de tempo atrás. E duvido que isso será diferente em algum momento.

Certas coisas são para sempre, não é mesmo?

Quando eu penso em você…o vermelho carmim de suas unhas vem à cabeça. O decote generoso e o andar sensual que atiçava os olhares que te seguiam e amaldiçoavam. Sabemos que era inveja pelo que apenas os olhos podiam tocar.

Eu pintei o cabelo de vermelho, para desespero da moça que mexia a tinta no recipiente, e que cuidava dos meus cabelos longos desde a adolescência – e se você não gostar? – ela disse. Tentando me fazer mudar de ideia. Eu dei de ombros e disse, recorrendo ao seu tom de voz, pausadamente: a gente raspa. E eu achei que os olhos dela fossem saltar da cara. Por dentro, eu ria.

E por muito tempo, naquela rua, eu fui vitrine e a culparam pela menina indisciplinada que me tornei. O padre – a pedido de minha mãe, me fez contar não sei quantos mil rosários e rezar não-sei-tantas ave-marias… confesso que, mentalmente, cantava Audislave. Amém!

Você me moldou e libertou das normas da minha mãe, que desistiu de me domar. Um dia – nos atrás – eu a ouvi ela dizer que você era a culpada por minha rebeldia. Mal sabia ela que algumas pessoas já nascem livres e basta apenas que alguém nos dê um pequeno e significativo empurrão. Ninguém tem culpa quando a vida se resume a uma pessoa. Ou você é livre ou é refém. Seja de normas, regras e leis impostas por “pessoas de bem”.

No limiar da força que a liberdade nos traz, o estoque da força vem da repressão. Confesso que não temo mais o que pensam de mim e nem de como me veem.  Porque, no final das contas, o engenheiro inglês estava certo: o problema nunca esteve com você e sim nas pessoas que se acham no poder de julgar alguém.

Te abraço,
Mariana Gouveia
Carta publicada no Projeto Coletivo O casarão
Scenarium Livros Artesanais

Diário das quatro estações · Livros · Mariana Gouveia · Scenarium Livros Artesanais · via lunar

 dos acontecimentos inéditos

A noite se recolhe gesto… acolhe a geometria das horas e o signo ascendente. Desenho histórias vividas através dos acontecimentos inéditos. Era lua de se perder, em algum lugar. Ninguém sabia os caminhos das rotas e os retornos nos devolviam sempre para o mesmo lugar no mapa onde atalhos não são traços possíveis. E são o melhor da viagem, que começa do lado de dentro. Descubro que o meu nome se repete em outras pessoas, com sonoridade nova. Sou duas e ao mesmo tempo: uma… dentro da minha solidão. E em meio a perguntas que ficam no ar, brinco de roda com o dia porque se existe a lua de se perder na aldeia, existe também a de plantar, cortar o cabelo, de pescar e catar ervas.

Qual delas eu sou enquanto escrevo?

Mariana Gouveia
Desvios para atravessar quintais.
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Afetos · Livros · Mariana Gouveia · Scenarium Livros Artesanais

Andarilha

Ph: Pinterest

E se eu inventasse
uma bússola?
Serviria para orientar
… os navegantes?

Mas, para qual Norte
… apontaria?

A rua de cima
… endereço da casa laranja
e do pé de ipê
que derrama suas flores rosas
na calçada?

Ou o velho baú
… na casa antiga da infância
Onde moram os sonhos todos
… as vontades
E todas as minhas saudades?

Mariana Gouveia
Coletivo de Poesias Andarilha
Scenarium Livros Artesanais

Das palavras das cartas · Livros · Mariana Gouveia · Scenarium 8 · Scenarium Livros Artesanais · via lunar

À Emily

Emily,

Assim como você, eu nunca recebi uma carta do mundo e já escrevi algumas vezes para ele. Devo te confessar que procuro a parte mais bonita dele. Porque as coisas aí fora estão terríveis demais. Eu já escrevi tantas cartas que não enviei, tantas que embolei e o mundo, em muitos momentos, não foi afável comigo.

Já pensei em enviar postais e falar do meu lugar, das mãos que tocariam os postais da lua. Já imaginou se envio essa lua cheia que clareia todo meu quintal, com seu lume em sua fase mais bela?

Com quais mãos ele – tão cruel em alguns dias – receberia meu afago? Emily, às vezes, penso em gritar para o carteiro e perguntar se ele mandou um bilhete, um manuscrito que só eu e ele entendemos…  mas, o moço que estende as mãos com envelopes pardos e seu uniforme amarelo me diz que tem saudades das cartas em envelopes branco e suas listras verde e amarelo – cores que me aborrecem no hoje – e eu apenas aceno com a cabeça.

Acho que pensamos as mesmas coisas – notícias simples da natureza… mas, ele entenderia o meu pé de ipê florido em uma tarde de fim de agosto, quase 40º e o sabiá laranjeira pedindo chuva? Ou da solidão que minha alma sente – quem sabe a mesma sua – em dias mornos.

Sabe, Emily, eu sempre escrevi cartas e sempre esperei respostas. Seja do mundo, ou dessa solidão desvairada. Fiquei de mãos vazias tantas vezes – assim como você – e minhas mãos de camponesa cavou silêncios… de afáveis, colho borboletas… será que a resposta virá em forma de asas? Ou eco de tambores?

Você percebeu, Emily, que sou muita perguntadora e que quando vi sua solidão imensurável, nas faltas de respostas desse mundo que se ativa cada vez que escrevemos poemas provocou em mim a mesma solidão.

Eu também sofro das noites insones e sou viciada nesse som de envelopes recém rasgados e do cheiro da cola quando selo um deles.

Eu sou a louca das cartas que nunca tem respostas… as minhas, muitas vezes, já nascem desfeitas mesmo antes que eu as escreva.

Portanto, Emily, junto minha solidão à tua… minhas palavras se esbarram na branda majestade que endereçam a verdade de quem escreve esse vazio, em forma de poema. Aqui não acontece nada… é apenas esse vácuo, de uma resposta que a gente já sabe que o mundo ficará devendo.

Com carinho,
Mariana Gouveia
Carta a publicada no Coletivo A terceira noite
Scenarium 8
Scenarium Livros Artesanais