Das palavras das cartas · infinitamente · Mariana Gouveia

O impossível é só questão de opinião

Jean,

Dia desses eu sonhei com você e acordei com o som de sua voz ainda ecoando em mim. Você cantava sua música favorita e usava a boina de crochê colorida estilo Bob Marley que fiz para você.

Lembro-me que falávamos sobre tatuagens e você queria fazer uma… seria uma letra de música? Tribal? Ou um dragão? Confesso que não me lembro e perdi os anos desde que você se foi. Já são quase duas décadas e ver você em meu sonho me levou para dentro de nossas conversas. Seu time preferido já foi campeão tantas vezes e seus amigos quase todos já casaram. Alguns, ainda perguntam de você e contam as coisas que vocês viveram juntos em um sorriso gratificante de poder ter te conhecido.

Queria te dizer que sinto saudades de você e que alguns lugares daqui me lembram você. E você sabe que sua tia nunca vai te esquecer. Hoje, seria seu aniversário e me pergunto se além da terra e da fé que a gente vive será que ainda é aniversário para além de onde você vive? Alguns diriam que é impossível, mas como sua canção preferida diz: pra quem tem pensamento forte o impossível é só questão de opinião e eu prefiro acreditar que sim, para além dos sonhos e dentro de mim.

Essa é uma daquelas cartas que eu apenas escrevo, para continuar te mantendo dentro do meu carinho. E é assim que comemoro seu dia, mesmo que seja em meu coração.

Te amo,
sua tia,
Mariana

Das rotinas · Mariana Gouveia

Cabia onde aquele verbo que voava?

Estendeu as mãos perdidas nas flores…
Desvendou o caminho da floresta na volta para casa.
Namorou verdadeiramente a lua.
Cabia onde aquele verbo que voava?
Continha onde a asa num grito?
Os medos bobos foram jogados pelos caminhos.
Alguém leu a noticia da sorte em um livro. Buscou o bilhete do realejo que tirou na infância.
O trevo marcava o coração dos bichos…
Pulou sete ondas imaginárias. Desejou a sorte de um amor tranquilo.
Viveu até onde a vida respirou saudade.

Mariana Gouveia

Das rotinas · dos diários · Mariana Gouveia

A vida é uma poesia para ser vivida.

A solidão das horas veste o verbo do dia. Um homem conta na TV como abraçar uma árvore. Se emociona quando repete os gestos feitos há muito tempo.
A vida é uma poesia para ser vivida.
A sorte aparece descrita na folha. A expectativa da viagem anotada nos mapas…
No equilíbrio cronológico do dia bebe – se o néctar das flores.
Só há um único saber entre o plantio e a colheita.

Mariana Gouveia

Das rotinas · do verbo voar · Mariana Gouveia

Da geografia das coisas

Escrevo o roteiro da viagem dentro da poesia e coloco nome nas coisas de amor.
A canção repete em mim o gesto. O gosto de férias aproxima e a rotina ganha anotações diárias.

Faço listas, cumpro metas… Jogo fora lembranças que só aumentam a bagagem… Preparo sementes para jogar nas estradas. Refaço planos que tinha esquecido… Hoje, já posso quase tudo dos rituais. Varrer as folhas, aspirar as flores, beijar os cães – me imunizo das vontades todas. O sorvete de pistache a me contar sabores… Quase uma rusga de felicidade.
Houve mudança no tempo. A estação dá seus sinais na frieza do dia. O vento antecipa a queda da temperatura e a febre é só um presságio na ave que beija a flor.
Guardo os mapas, recrio instantes que ainda vou viver…

Mariana Gouveia

6 on 6 · InspirAção · Mariana Gouveia · Scenarium Livros Artesanais

6 on 6 – about

No inverno, um animal
 Na primavera uma planta
No outono – uma ave 
O resto do tempo sou uma mulher 
Vera Pavlova

Tantas vezes, em tantos casos eu sou a menina e em outras sou a própria história inventada. A biografia escrita nos olhos dos outros.

Já fui também a artista que compunha casos e imitava em arte aquele que escrevia coisas para além da alma. a que justifica o próprio ato, antes de atuar.

Tudo em mim vira asas e pousos… gosto da chuva, das tempestades, dos raios e trovões. Da lua, das nuvens. Mais de bichos do que de gente.

Nas minhas digitais trago pólen de flores, poeira dos pés de animais, de asas de beija-flores e no ouvido tenho o som eco dos corações deles.

Em alguns momentos, eu sou preto e branco, silêncio, melancolia e saudade.

Mas, na maioria das vezes sou essa multiplicidade de vozes… das mulheres tantas que vivem em mim – mãe, avó, neta, tia, mulher, poeta, escritora, artesã, fotógrafa e adoradora da vida. A que gosta de pisar na terra e olhar para o céu. A que chora e que ri. Sou eu. Plena de mim e ciente de meu lugar no mundo.

Mariana Gouveia
Projeto Fotográfico 6 on 6
Scenarium Livros artesanais
Participam comigo:
Lunna GuedesObdúlio Nunes OrtegaRoseli Pedroso e Suzana Martins

dos diários · Mariana Gouveia

quando era a vez do desencanto

Ph: Alisa Verner

A noite se entrega no gesto. Acolhe a geometria das horas e o signo em ascendente. Desenha histórias vividas e eu busco vontades que nunca experimentei. Alguém me diz sobre fatos que nunca imaginei. Era lua em algum lugar. Ninguém sabia os caminhos das rotas. Os retornos voltam sempre para o mesmo lugar.

Às vezes, tudo é o mesmo lugar no mapa e você fica a desenhar atalhos – e embora esses passam a ser a melhor parte da viagem – e a rotatória não muda… Ciclos.

Seu nome repetido em gestos em parentes, amigas, sonhos… Onde seu nome quando?
Qual flor o jardim canta? Que solidão a minha se une com a tua?

Em qual idioma eu criei asas e perdi o encanto? Em qual encanto você se perdeu de mim?

O precipício é logo além do que os olhos veem. E a certeza é de que só vale a beleza do caminho ou da essência em que nossa alma aspira.

Mariana Gouveia

Das palavras das cartas · Das rotinas · infinitamente · InspirAção · Mariana Gouveia

Das sílabas feitas dentro do verbo amar…

Era uma vez e muitas vezes
Um homem que amava uma mulher 
Era uma vez muitas vezes 
Uma mulher que amava um homem 
Era uma vez muitas vezes 
Uma mulher e um homem 
Que não amavam aquele e aquela que os amava. 

Era uma vez 
Talvez uma vez apenas 
Uma mulher e um homem que se amavam. 
 Robert Desnos

Amor,

às vezes, eu preciso voltar no tempo dentro do meu amor por você. É onde nos encantamos com o que vimos para além do céu, das flores, dos bichos e nas trocas de olhares. Um sabe tanto do outro, que em muitos momentos, as palavras perdem o significado.

Em outras vezes, te nomeio guardião de mim… de tantos momentos difíceis e de sua capacidade de entender meus medos, de admirar minhas coragens, de chorar junto nas minhas dores e de ser o amigo que me ouve nos desabafos.

Comemorar seu dia é repetir gratidão ao Universo pela bênção de te ter comigo, de dividirmos juntos uma história em sílabas feitas dentro do verbo amar.

Sabe, amor, em alguns dias eu revisito os passos que me levaram até você… e o que é bom é que, dentro de tantos momentos, tenho certeza de que se pudesse voltar no tempo, eu faria tudo de novo, para viver a mesma história de amor com você.

Te amo infinitamente,
Feliz Aniversário!
Mariana Gouveia

do verbo voar · dos diários · Marítima · Mariana Gouveia

A liberdade límpida do vento parado dentro da ave de todo dia.

Ph: Oleg Tchoubakov

Tem dias que essa ternura destemida do seu olhar morre dentro da palavra. Não colheu as flores do dia. Ouviu a canção do mar dentro nas conchas esparramadas na estante. Fechou os olhos diante da dor – as 45 gotas lembraram as sementes de romã – o coração esparramado em pedaços nas folhas. Choveu no jardim com o regador para o cheiro de terra exalar onde a secura predomina nesse inverno. Falou sobre ansiedade com a alma. O silêncio do vento – quase brisa – a calar vontades. Essa asa é quase um cheiro de maresia não solúvel no ar. A circulação é essa coisa universal… vem com a asa. A liberdade límpida do vento parado dentro da ave de todo dia. É a respiração viva do amor. O varal a contar histórias dentro dos voos e sua autonomia delimitando brisas. O produto derivado da ave é o voo e a delicadeza vem em forma de beijo. Ave, beija!

Mariana Gouveia

De todas as estações · do verbo voar · Mariana Gouveia

Das autonomias dos voos

Era ali, o meu palato inspirado na sorte, alguém falou sobre as notícias da noite e o dia nem acabara de surgir. As cortinas abrem para a janela lateral enquanto a canção ecoa no quintal.

O vento fresco anuncia a mudança da estação. Além do muro a esperança era escrita nas paredes pelas crianças.

Queria essa solidão de todos e o exílio das asas levando o vento onde pousava e os pés dourados a procurar segurança. Minha varanda tem vista para a floresta e as malvas a derramar aromas silvestres no quintal.

Todas as manhãs eu renascia dentro das autópsias de vidas que iam e revivia nos versos que elas me deixavam em relicários de voos que ainda não fiz.

Mariana Gouveia

Das palavras das cartas · infinitamente · Mariana Gouveia

Pai

Pai,

mais uma vez eu te escrevo e percebi que faz tempo que não nos falamos. O telefone, para você, se tornou obsoleto, porque você não ouve direito. É apenas a chamada de vídeo, os gestos e o riso de sempre lembrando que ainda me reconhece.

Sabe, pai, de vez em quando eu volto ao meu tempo de menina. Isso acontece quando eu acolho os bichos em minhas mãos. Você me dava coragem para acolher os bichos de asas… e depois disso, passei a ser escolhida por eles. Eu acho que sou parte deles, pai. É quase involuntário. Abro a mão e eles vêm e pousam. Tanta gente tem medo deles… eu tenho carinho, pai e nem sei bem se a palavra é essa.

Pai, o junho começa com seu dia e as lembranças do mês dos santos me faz ter nostalgia dos dias em que a gente ficava à beira da fogueira, as simpatias feitas em nome do santo casamenteiro. Os doces, os balões e as histórias. Sabe, pai, você me deixou um legado de histórias e sempre conto elas para um ou para outro para registrar essas coisas que ficam dentro de nós para sempre.

Escuta, pai, tenho as lembranças todas penduradas no porão… as fotografias guardadas em caixas antigas, com o cheiro de antigamente. É disso que vivo e dos dias em que lembro-me de você, tão presente na minha história. Apenas sou no mundo, pai e o mundo é em mim, e o tanto que isto é, por sua causa. E hoje, dentro desses dias e dessa representação, te ofereço minha mão pedindo benção, pai e feliz aniversário!

Te amo muito!
Mariana Gouveia