Mariana Gouveia · Todas as ruas

Minha rua…

tem palmeiras onde canta o sabiá

Dizem que a gente nunca esquece a primeira vez… e eu ainda guardo na memória a primeira vez que pisei em Cuiabá. Eu tinha sete anos e minha mãe veio visitar a minha avó, logo depois da partida repentina do meu avô.

A cidade grande encheu meus olhos ainda dentro no ônibus, na rodoviária. Minhas mãos, grudadas nas da minha mãe dentro do táxi que nos levava ao endereço escrito no papel: Avenida São Sebastião, bairro Santa Helena.

O carro cruzou a principal avenida – Getúlio Vargas – ladeada de palmeiras, onde não se enxergava o fim delas.
– Será que elas tocam o céu, mãe? – digo isso, enquanto o motorista conta que aquela avenida era o cérebro de Cuiabá e mostra do lado o direito, o cinema, a fonte luminosa na praça, que no fim de tarde, já fazia sua dança de cores e logo mais acima, ficavam os bares, mas viramos antes. naquela noite, eu nem dormi. As novidades eram muitas e dentro dos meus sete anos conheci meus tios maternos pela primeira vez.

Um dos meus tios me levou de bicicleta mais uma vez, antes de irmos embora, de volta para nossa casa, na rua que tinha as palmeiras. Tão imponentes e altas que pensei que tocavam o céu. Ali, ouvi os sabiás, de cantos diferentes dos sabiás da fazenda.

Anos depois, mudei para Cuiabá. Parecia que a avenida me acolhia todas as vezes que passava por ela. Era como se ela recordasse daquela menina cheia de sonhos. As palmeiras ainda continuam ladeando a avenida como se a protegesse. E eu ainda ouço os sabiás e outros pássaros por ali e já não penso que o canto seja diferente dos pássaros da fazenda. Talvez, a menina se confundiu com o canto, diante da magia das copas das palmeiras que ainda tocam o céu.

Mariana Gouveia
Todas as ruas

Mariana Gouveia · Todas as ruas

A rua da padaria que vendia sonhos

e se chamava Hortênsias

Eu, por acaso, fui morar naquela rua, amparada por um amigo que nasceu no dia de Natal. Estava grávida do meu primeiro filho e Natalino me acolheu depois que tive de sair de casa. Não foi só ele… mas todos os familiares dele e amigos. A gente se conhecia da rádio. Natalino entregava os jornais em todas as ruas do bairro. Era um meio de aumentar a renda. Nos trombamos em uma dessas madrugadas atrás de notícias, nos idos anos 80.

Nos conhecemos na madrugada, enquanto eu e seu Lino – ainda vou escrever sobre isso – íamos para o trabalho. Seu Lino trabalhava no cemitério – o mais tradicional da cidade – e eu na Rádio A voz d’ Oeste que ficava na rua que fazia fundo com o cemitério. E Natalino entregava jornais nessa região e me acolheu quando me vi só, grávida e sem lugar para morar. Fui morar na Rua das Hortênsias. Em um quartinho acolhedor na Vila Jardim.

A casa ficava nessa vila, na Rua das Hortênsias. As ruas do bairro tinham nome de flores, mas aquela rua não só tinha o nome de flor, mas em toda sua extensão, canteiros de hortênsias brotavam. Assim, como brotavam em minha janela o pão, o leite quente com chocolate, as frutas e o amor em forma de bilhetes encorajadores de irmãs e irmãos de Natalino – sete, ao todo – e de toda proteção de dona. Zenaide – mãe dele.

Eu trabalhava em uma rádio e meu horário começava na madrugada. A padaria, na ponta da rua preparava os pães para o amanhecer. O cheiro me acompanhava desde quando abria o portão até cruzar a esquina, rua afora. E a pedido de Natalino, o dono suspendia a porta para que eu entrasse e tomasse o café da manhã.

O sabor do chocolate quente e o pão amanteigado me encorajava em todas as madrugadas para continuar. Mas, o que me motivava era o pacote com papel de pão que embrulhava um sonho. Desses recheados de creme. Em muitas madrugadas eu vomitava, os primeiros meses de gravidez foram difíceis, mas os últimos, foram de serenidade e o creme ganhava o doce sabor da amizade. Assim como as hortênsias que abriam seus botões no azul suave que continha o nome da rua, pela qual eu passava sem esperança – ou com toda ela na barriga.

A rua parecia desenhada em folhas de papel e seus personagens pareciam transvertidos em anjos. E se não fosse por isso, eu teria perdido todo o sentido de viver quando meu filho morreu poucas horas após o parto. Tive mãos acolhedoras, abraços apertados, companhias silenciosas e sonhos embrulhados em papel de pão;

A vida corre ligeira demais. O calendário ultrapassa o tempo. E a vida cobre o determinado tempo de se viver. Dias atrás, fui abraçar Natalino em sua perda maior – a da mãe – e a rua me acolheu como naqueles tempos de dores. Mas, naqueles dias, eu nunca estive sozinha. Eu sempre tinha um riso, um amparo, um ombro e mesmo quando não havia ninguém, por algum motivo, as flores me faziam companhia.

Hoje, lembrando disso, o cheiro do pão da madrugada me acolhe. O sonho recheado de creme tem o sabor da amizade. Dessa que dura mais de 38 anos. A Rua Hortênsias ainda existe. O quartinho que era meu, acolhe outra menina cheia de sonhos e a minha coragem de viver se mistura apenas com a gratidão que sinto pelas pessoas que o Universo coloca em minha vida.

Marina Gouveia
Todas as ruas

Mariana Gouveia · Todas as ruas

A rua do excesso

onde a solidão se escondia antes do botequim.

A frase na tabuleta me dizia que eu podia passar – pelo menos era uma justificativa plausível para dar ao meu pai – pela rua proibida. Afinal de contas, eu não era perfeita e a rua era de todo mundo. A gente havia mudado a pouco tempo para a pequena cidade – cujo município eu e meus irmãos nascemos, para além da fazenda – e meu pai arrendou um pequeno bar.

O bar ficava na rua proibida porque logo antes de chegar nele entre uma esquina bifurcada ficava a “casa das primas” que era o nome que a gente ouvia de todos entre outros nomes como Casa da luz vermelha, ou como minha mãe dizia: a casa das mulheres de vida fácil e explicava que não sabia de onde o povo tirou essa frase, porque a vida delas não era nada fácil.

Para fugir dessa rua tínhamos de dar a volta em um quarteirão e meio, o que tornava o caminho muito mais longe e claro que nem sempre obedecíamos nossos pais e com toda curiosidade atiçada passávamos na rua da casa das meninas.

A dona era Valci – que muitos chamavam de Valcizona – e que tinha um dos risos mais lindos que pude ver. Um dia, para não atrasar ao levar o almoço do meu pai não dei a volta como era combinado com minha mãe e ao passar em frente a dita casa vi ela abrindo o portão. Os cabelos vermelhos me deixou impactada. A roupa florida esvoaçante e o riso que me deu ao dar de cara comigo, ali, parada.

Eu não entendia porque as pessoas que passavam pela rua faziam o sinal da cruz e de como ela reagia a isso. Quis aquele cabelo, quis reagir as coisas como ela reagia e quis muito rir igual a ela.

Tempos depois, quando caí de bicicleta bem em frente a casa dela fui socorrida por ela, que mandou alguém chamar meu pai. Com o joelho arranhado e a mão com entorse e fui levada para dentro. Ainda me lembro das cortinas esvoaçantes e do chá oferecido enquanto eu enxugava as lágrimas. Por um momento eu esqueci a dor e me vi rodeada de várias mulheres. Embora, não entendesse realmente o que acontecia ali eu vibrei pela minha aventura.

Quando meu pai chegou ela nos acompanhou até a casa, mesmo com meu pai sendo contra. Minha mãe já nos esperava na porta e ofereceu um café, como agradecimento, afinal, ela era cliente do bar também e seria uma desfeita. Virei o centro das atenções quando ela macerou umas ervas e colocou em volta de minha mão e os olhares dos meus irmãos mostravam toda curiosidade sobre o que eu tinha vivido.

A partir daquele dia, ao passar pela rua – que já não era mais proibida para mim – ela me acenava com um sorriso e eu correspondia, com o coração aos pulos, jurando que um dia eu ainda pintaria meus cabelos de vermelho. E pintei… mas isso, é outra história.

Mariana Gouveia
Todas as ruas

Mariana Gouveia · Todas as ruas

Foi uma rua…

que passou em minha vida.

A rua se chamava Liberdade e até hoje tenho na memória os momentos que vivi ali. Eu tinha 12 anos e na Rua Liberdade tinha um cinema que tocava músicas o dia inteiro. A gente veio morar ali por acaso, depois de mudarmos da fazenda.

Foi a primeira vez que vimos televisão e através da janela da vizinha – até o bom humor dela durar e fechar a janela bruscamente, e isso, acontecia muitas vezes – e a novela era Locomotivas. A trilha sonora da novela tocava no cinema da minha rua, alternando entre Diana, Porque brigamos, Odair José e seu Pare de tomar a pílula e Caetano com Sem lenço e sem documento.

Quando acabava a novela – ou D. Vilma, a vizinha, fechava a janela – a gente brincava de esconde-esconde, bete e de contar histórias. A calçada alta em frente da casa era o ponto de encontro. Eu sonhava com as histórias que o cinema contava. Via os casais passarem por nós comentando sobre um romance ou comédia. E havia os dias em o matinê acontecia, mas com sete filhos, minha mãe não podia pagara para todos irem.

Na rua morava um policial e muitas vezes ele nos contava histórias dos bandidos que ele prendia. Nessas noites eu não dormia. Me encolhia toda embaixo do lençol e encostava em minha irmã mais velha, já que eu dormia com ela. Qualquer barulho era motivo para o grito e eu acordava a casa inteira.

Nas tardes mornas, descobrimos o picolé minissaia – um picolé colorido com sabores de duas ou três frutas – que levava nossa mesada toda em uma semana. O picolezeiro era o Sebastião, que vendia picolés e doces para ajudar a mãe e os oito irmãos. Ele aproveitava a venda para brincar com a gente.

Ainda me lembro do sabor e de como dividíamos os picolés através de mordidas e repartíamos abraços. Sorríamos o tempo todo. Não havia uma razão para alegria, mas a gente sentia ela no sabor do picolé, na boa vontade da vizinha que, às vezes, esquecia de fechar a janela e a gente podia ver um episódio inteiro da novela, nas canções que tocavam no cinema e nas brincadeiras com as crianças da rua.

Foi ali que nossos cabelos foram cortados por causa do piolho e foi também onde minha irmã mais velha foi morar depois de casada. Eu quero muito continuar lembrando disso. Das coisas que me lembro e me fizeram ser o que sou hoje, Do cheiro das comidas das vizinhas, do riso guardado do policial que virou meu padrinho depois, do pé quebrado depois que caí da calçada alta, dos dias passados no hospital recebendo visitas dos meninos e ganhando picolé minissaia de graça do Sebastião e da rua que se chamava Liberdade.

Mariana Gouveia
Todas as ruas

Mariana Gouveia · Todas as ruas

Em todas as ruas,

me perco…

A primeira rua que tracei sob meus olhos era na verdade uma estradinha, logo para além da floresta de bambus. Para mim, era a rua que dava para a prainha, aonde a gente colhia areia para arear os alumínios da cozinha.

Eu e meus irmãos seguiam minha mãe com os sacos de pano para trazer a areia, que dava para os quinze dias que ela mesmo definia. As margens do riozinho que circulava a floresta produzia uma areia tão branca e fina. A minha mãe tratava aquele lugar como se fosse o paraíso e parecia mesmo uma rua na beira do rio.

As panelas, mesmo depois de usadas no fogão a lenha ficavam brilhando na prateleira de madeira, com os forros bordados por ela. No dia da faxina, cada uma das filhas cuidava de uma tarefa predeterminada. A areia, tratada quase como um tesouro era colocada em um pote e as louças iam ganhando brilho.

Talvez seja um dos lugares que mais sinto falta. Era lindo passar pela floresta de bambu e dar de cara com o rio e sua areia branca estendida como se abraçasse a água.

Depois disso, outras ruas me abraçaram e em quase todas elas me perdi, de uma maneira ou de outra,

Mariana Gouveia
Todas as ruas

Mariana Gouveia · Scenarium Livros Artesanais

Preto e branco

A última música ainda toca aqui e o mosaico das
fotografias em preto e branco no fundo da caixa…
alguém um dia leu as linhas de minha mão e traçou uma rota de saudade… Era você a personagem
do livro que sublinhei, por quem me apaixonei e
repetia o teu nome dentro da frase “eu te amo”
que se tornou um mantra na minha boca.
Era uma fuga ao passado — sem bússola, apenas
para dizer que no espelho o sonho dorme, o desejo chega e as cores somam… E ao revirar essas coisas todas — tão nossas — percebo que sou o filme
não revelado ainda na câmera e restando fotografias para clicar.
Dizem que ao abrir a câmera, o filme vela… seria
então o nosso fim?

Mariana Gouveia
Coletivo Mosaicum
Scenarium Livros Artesanais
Ph: Tumblr

Das rotinas · infinitamente · Mariana Gouveia

Dessa vez, para sempre.

Esses vãos escondidos no branco dos olhos
criou de tanto olhar, saudade.
E a chuva não aguou os instantes
que seriam para a eternidade.

Ah, esses vãos subtraídos
dos instantes todos
recolhem vestígios de gozo
nos dedos
sabor agridoce na alma
e cheira a lua que todo mundo espia
e que reflete a vontade
e o silêncio que dura uma eternidade.

Ah, esses desavisos de agonia no peito.
É noite, onde pisei descalça
em homenagem ao sonho que fica e dura.
Essa ansiedade toda de que a lua faça
você abrir a janela, pensar em mim e voltar.
Dessa vez, para sempre.

Mariana Gouveia
Ph Philippe Deutsche

Das rotinas · Mariana Gouveia

Era o filme 3d…

Não fosse eu, nessa tarde insolente
e a essência das folhas a povoar o quintal.

Não fosse eu, seria o pássaro a descobrir a madrugada
no seu canto sobre a parabólica ainda envolta no breu.

Era o filme a desvendar nas mãos a analógica do dia.
O céu a despontar centímetros no avançar dos segundos,
a povoar de cores as nuvens no rompante do amanhecer.

A vida a acontecer minúscula no rumo das coisas.
Não fosse eu, era você.

Mariana Gouveia

Das rotinas · Divã · Mariana Gouveia

Horóscopo do dia

Me pediram o horóscopo do dia. A pessoa que fazia isso morreu – ou viajou, ou mudou – sei lá!
Há uma contradição dos astros hoje. O astral me povoa. Cria multidão em mim. Estrelas cintilam nos olhos dela.
O vento empurrou Júpiter para perto de Vênus. Marte partiu.
Seu signo combina com o meu. O Decanato mora na esquina da rua detrás. Chamam-no pelo apelido. Nunca atende pelo nome dele.
Hoje será seu dia de sorte. Amanhã também. Isso se não enlouquecer pensando nos sentidos que as várias fases da Lua tem.
O tempo muda hoje. Continue nas rotinas do dia.
Vai conhecer o amor da sua vida – isso, se já não conheceu.
Momento dos mais benéficos para viver ou morrer.
De amor.

Mariana Gouveia 

infinitamente · Mariana Gouveia

Exorcizada

em sua melhor fase queriam exorcizá-la
colaram nuvens ao seu redor
criaram eclipses,
efeitos solares

em sua melhor noite
inverteram o céu – tão lunar ela era

apontaram-na como bruxa – um caso perdido
que só um ritual complexo poderia curá-la

quando cheia, ela cansou de tudo isso
lambeu os dedos 
e os queimou na fogueira que ardia dentro dela.

Mariana Gouveia
Das coisas breves
Ph: Tumblr