Só a rajada de vento
dá o som lírico
às pás do moinho.
Somente as coisas tocadas
pelo amor das outras
têm voz.
Fiama Hasse Pais Brandão
Dobrei os tsurus como a minha mãe havia me ensinado e lembrei – me dos dedos dela a fazer as dobraduras como se tivesse feito aquilo a vida toda. Tinha habilidade com as mãos, sabia disso desde cedo quando a via nas costuras… a tesoura a cortar os quadrados para a colcha de retalho, o tecido a ganhar contornos de roupas. Mas o que mais me encantava era a maneira que ela criava os desenhos para os bordados.
Ela nunca fizera nenhum curso de desenho e conseguia com suas mãos delicadas – as mesmas que revolvia a terra, no preparo da horta – criar a borboleta pousada na flor no papel vegetal ou em um saco de pão e conseguia transformar o desenho em um bordado. As mãos contornavam o papel com a ponta do lápis e surgiam aves, flores, jardins, castelos e paisagens.
Era uma mulher forte e ao mesmo tempo suave. Os olhos conheciam um a um dos sete filhos com suas diferenças e jeitos. Conseguia arrancar de cada um de nós o seu melhor. Em cada canto da casa seu traço estava explícito. Nas prateleiras dispostas na parede da cozinha de frente para a porta, onde as panelas de alumínio reluziam sobre as tolhas bordadas, feita por ela mesma.
Colhia as flores de lavanda e na água do enxague o cheiro rescendia na casa toda, enquanto os lençóis quaravam ao sol. O rio a margear a tábua de bater a roupa e a pedra, moldada pela correnteza, onde no fim do dia, sentava-se e cantava para espantar o mau agouro. Tinha fé nas coisas simples, seja ela uma pena que ganhava força com o vento ou na ave colorida que roubava os coquinhos na palmeira do quintal.
Os cabelos imensos, ora em tranças, – ou esvoaçante no vento, enquanto secava – ou em um coque perfeito, tal como a canção que falava sobre uma índia: “índia seus cabelos nos ombros caídos negros como a noite que não tem luar “ – que é o que ela era – e traçava os sentidos em nós da alegria de ser… O pai deve ter apaixonado por aqueles cabelos que chegavam abaixo do meio das costas, como uma cascata negra – pensava sempre nisso. Sua presença trazia cores e sons pela casa. A máquina de costura a bordar, as panelas a cozinhar alguma guloseima e a canção antiga na beira do rio, até hoje, traz os traços dela:
“Mandei caia meu sobrado, caiei, caiei, caiei.
Pintei de azul e branco, caiei, caiei, caiei.
Eu pintei de azul e branco, caiei, caiei, caiei.
Mandei pintar na varanda, mandei, mandei, mandei.
Eu pintei de roxo e amarela, caiei, caiei, caiei.
Eu pintei de roxo e amarela, caiei, caiei, caiei.
Mandei pintar na janela, mandei, mandei, mandei.
Eu pintei de verde e cinza, caiei, caiei, caiei.
Eu pintei de verde e cinza, caiei, caiei, caiei.
Mandei pintar meu luar, mandei, mandei, mandei.
Com as cores do arco-íris, caiei, caiei, caiei.
Com as cores do arco-íris, caiei, caiei, caiei.”
Ela era literal – e não há como escrever sobre ela senão literalmente – gostava das dobras… em tecidos ou em papel e de traçar os próprios riscos na bordadura. Conhecia o barulho da máquina e dos ventos. Sabia quando o vento trazia a chuva logo para além da porteira e quando falava da vida, era de poesia que falava. Quando abro os braços e chamo o vento, é nela que penso em sua filosofia de que o vento é o Espírito Santo.
Não dá para saber como as dobraduras de uma arte secular do outro lado do mundo chegou até ela. Imagino que fosse pelos livros – os milhares que ocupavam um baú de mogno moldado pelo pai – com os desenhos feitos por ela eram reverenciados como oração. Acreditava que eles possuíam o poder de não envelhecer e ela não envelheceu.
O movimento de ida foi rápido e desenhado dias antes da partida. O vento era seco e uma mariposa gigante pousou no colo dela. O olho grande, ganhou contornos de conformismo e ela pediu apenas que a arte fosse parte da vida da gente.
“É ela quem dá fôlego quando o ar falta de diversas maneiras. E quando, porventura, faltar apoio nas lutas.”
Não sei de qual luta ela falava. Traçou tantas em tão pouco tempo. Fez diferença em tantas outras vidas como a dela. Ensinou traços a muitas “filhas avulsas “do mundo e virou traço além, em algum lugar em que acredito.
De vez em quando, em um fim de dia, quando o céu expande formas e cores eu me lembro de seus traços e nesse momento faço um tsuru como maneira de seguir a arte que ela tanto amou.
Mariana Gouveia
Agosto é o mês de Tsurus e de B.E.D.A
Participam desse projeto: Claudia Leonardi – Obdúlio Ortega – Lunna Guedes – Roseli Pedroso – Adriana Aneli – Darlene Regina
*Texto publicado na Revista Plural Traços
Scenarium Livros Artesanais
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