Pai,
Cada ano que passa nesse dia, eu visto a melhor roupa, venho ao teu encontro e estendo minha mão dentro de nossa história. Acredito que irei fazer isso a vida inteira… os caminhos me levam para quando eu era criança e você desenhava em palavras os contos que eu lembraria em tantas noites vida afora.
Que luz era aquela que brilhava ao longe? — você detalhava os monstros com diversos nomes e instigava a nossa imaginação com a brincadeira, treinando a nossa coragem até percebemos o vagalume a bailar no ar e fazer decoração na mata além da horta.
Você me entregou o delírio em uma caixinha disfarçada de cogumelo, me fazendo enxergar a leveza das coisas, o encanto mágico que acontecia a cada instante. O elixir que curava ou matava… a ciência de conhecer a melodia da floresta que nos indicava onde era o lugar seguro, como conseguir água ou simplesmente parar em uma clareira e sentir a sintonia única com o universo.
Nas coisas miúdas você me mostrou a grandeza e o cheiro de todas essas coisas preencheu a minha memória com toques e suavidade. O tempo passa e seu dia é muito além desse dia primeiro de junho de todos os anos. As músicas que você me ensinou a cantar e as lembranças a misturar épocas dentro de mim.
Escrevo para você essa carta para que a irmã mais velha trate de ler para você… Mais uma vez, o rádio falará de seu nome em uma carta de amor e saberá que eu te amo todos os dias.
Às vezes, penso que nunca soube escrever sobre você. O que faço é apenas retratar o sentido que você escreveu em minha história e que enumero como memórias:
Memória 1:
Era um ritual da madrugada e o cheiro do café invadia os quartos… o rádio ligado no programa madrugador e o barulho do gado no curral… o leite tirado diretamente na caneca e a sensação de céu na boca…
São as minhas primeiras recordações…
Memória 2:
As noites em minha vida eram de encantamentos… enquanto os dias eram feitos de ensinamentos, as noites eram de retratar a vivência do dia.
O cheiro do arroz maduro na roça invadia cada canto do quintal e ao redor da fogueira a gente cantava as músicas do santo. O cheiro do chá de canela — feito com as folhas retiradas da arvorezinha que soltava a casca em pedaços de pau — que tinha gosto de encantamento. A batata assada na fogueira. A reza ensinada ali mesmo, enquanto você nos falava sobre a fé. O conto de fadas declamado com os ecos e assovios em sua voz de homem adulto.
Memória 3:
Estava nervosa e falava do meu primeiro amor… seus olhos apreensivos entre a resignação e o medo. A minha inquietação dos 14 anos e você lá, desenhando as regras sobre o que podia ou não. E o medo de te desiludir — que continua comigo. Seu jeito de mãe e a perda a doer a alma.
Memória 4:
Havia o amor escolhido… o vestido simples e dentro de nós, a festa desenhada lá atrás, quando nasci. Você falava de borboletas enquanto a juíza me pedia para dizer o Sim… e você o meu lado direito, com o olho de amor e benção, percebendo que a minha paz foi aceita e acolhida.
Memória 5:
As memórias se misturam nessa noite… em minha solidão, na ardência das horas. Eu chamo por você, grito por dentro o teu nome. Sinto a segurança do teu colo e a densidade de sua presença — mesmo tão longe — ainda é o meu porto seguro. Você me deu a liberdade de uma vida toda… as asas no seu amor rotineiro e cuidados onde me prendia às regras. E mesmo sem perceber, cada um de nós as seguia… porque todo mundo precisa de direção, de um guia. E você me deu… Exemplo vivo e real de caráter, força e fé. Porque cada lembrança é como se fosse um casulo a criar mudanças…
Feliz Aniversário, pai!
Mariana Gouveia, in, Desvios para atravessar os quintais
Diário das Quatro Estações
Scenarium Livros Artesanais
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