Mariana Gouveia · Plural · Scenarium Livros Artesanais

Carta aos cuidados do mar

Querida minha,

O dia acontece sem demora. A chuva antecipa a vagareza nos gestos.
O guarda-chuva quebra e o vento leva o pedaço rumo ao muro gigante da rua de cima.
E eu me lembro de você sempre que alguém assovia uma canção conhecida – que liga a tua  à minha e faz com que o som pareça ecoar dentro de nossa história.
O acaso, é essa fotografia que vejo dependurada na parede e tem suas iniciais gravadas no peito, enquanto a trovoada ecoa lá fora… As gotas, trovões e um pedaço do céu a alaranjar no Oeste – são gritos de sua alma na minha.
Ainda sinto o tatear de suas mãos a tocar-me com o desejo nos gestos. Vejo vestígios de um sapato na enxurrada e teu sotaque a relembrar uma curva do mar em que os calçados continham liberdade de alguém.

Bebo a chuva na palma da mão. A madrugada tem o dom de perdurar dentro das manhãs sonolentas. O sabor agridoce na boca dos teus sabores em mim. A leveza da pele úmida de vontades e ainda o encontro que não veio – e eu apenas o imagino.

Na volta, a chuva já se foi e o dia tem aspecto de inverno. Apenas a palavra da estação vibra em mim e penso nos instantes mágicos madrugadores que a gente viveu.

Na memória, sua pele trouxe a leve ironia das manchinhas nas costas. Nem era de Deus essa pele com pintas, onde desenhei nas pontas dos dedos o mapa imaginário do teu lugar.  Sinto que estou em você, e pensando nisso me aninho em teu colo como miolo de flor.

Me coloquei dentro das histórias de um outro país que você já visitou. Não era seu perfume que exalava… Era a rua de alguma cidade estranha e suas lâmpadas a iluminar as sombras nas calçadas; sou levada dentro da história e respiro a canção… 

Lembrei-me da dedicatória de um poema seu. O vulto das suas letras em carvão quase desenhando corações nas rotinas do dia. Fui me desmanchando nas suas poesias como líquido que escorre afoito feito rio que deságua no mar…

Era pouco, tão pouco ali o mar – tão imenso em seu alcance com o céu – a beijar o sol com suas rotinas de aves e gaivotas. Era pouco e era tanto e quanto aquele rio pedinte de toque, de encontro. E no pulsar das margens que o ladeiam, o suspiro, e era tanto – um mar de saudade – um rio de água doce de vontade nos gestos dos dias.

O avesso do mundo é essa lonjura nos mapas que vi nos livros de histórias onde te invento uma história com final feliz para nós duas.

Beijo

Mariana Gouveia
Carta publicada na Revista Plural Erótica – Scenarium Plural Editora
Agosto 2019
*imagem: Jonas Hafner

De todas as estações · Marítima · Mariana Gouveia

tua voz há de ecoar eu te amo como quem sonha

Ph: Tumblr

Nascia uma árvore no quintal. Abracei o vento como quem dança valsa na vida. Os pés alados atravessam o oceano a nado. O corpo, essa sede de toque, quase súplica para o desejo. Apenas o resquício de uma vontade que já foi. Pedindo voz para dentro do beijo. Alguém me disse que o amor nascia hoje, pelo riso dado e as declarações feitas. Lembrei-me da diferença da estação. A meteorologia e sua fúria em errar as previsões. As palavras do dia – lá, naquele passado estranho – revividas em contagem regressiva para desejar o amor e tua voz há de ecoar eu te amo como quem sonha e minha delicadeza comerá ternura dentro dessas palavras. Nascia a sorte nas cartas lidas, nos símbolos onde o coração foi rabiscado nas paredes tortas, nos trevos de três folhas mesmo com uma joaninha a dançar na folha. Quando os poros irreconciliáveis, com a pele que implora toque no braço que se abraça e a distância dita – quase nenhuma – entre o som do riso e a voz. Dentro da curva da noite, a chuva – na gota – coincidência do nada entre o nascer do amor aconteceu o mar.

Mariana Gouveia

Marítima · Mariana Gouveia

Sashimi

era uma vez, o tempo
esse oco de horas medidas em segundos

depois, houve o vento,
ecoando dados em corações que doem
o tic tac do tempo que não veio

e a ideia de que o mar
corria para o rio

esse oceano seco
de terra exposta
de mesa posta

a comida fresca
a alma perdida

eu, o peixe doce
para o seu mar salgado
sirva-se
– me –

Mariana Gouveia
Ph: Tumblr

Das rotinas · Mariana Gouveia

Conheci uma menina que andava descalça,

e possuía sapatos dourados.

Em uma das mãos o rio desaguava.
Levava a correnteza no sentido dos dedos,
e fazia o vento desmaiar nas margens
onde olho nenhum conseguia alcançar.

Na outra, possuía o dom do deserto
– Onde oásis era miragem mesmo –
e a flor que brotava desenhava
espinhos nos cabelos dela.

Cabia dentro do riso do dia
e nas noites de insônia colecionava a saudade
subversiva de amar.
Cantava canções de mar…

Declarava poesia de rio
e repentinamente desavisava o redemoinho de vento.
Criava casulos para se renovar.
Era mão para pouso,
ao mesmo tempo que amava a liberdade de voar…
Sabia da necessidade de sentir,
mas mudava a metamorfose de viver.


Mariana Gouveia
Das coisas breves
Ph: Howard Schatz

De todas as estações · do verbo voar · infinitamente · Marítima · Mariana Gouveia

dos seus pássaros que voaram…

ficou aquele na mão, preso – a gaiola dependurada no peito – sem jeito de asa ou ninho. Contei nos dedos os séculos sem você e o relógio na parede, vazio de horas e em silêncio lembrou-me da vitrola quebrada sem os vinis. A dispensa abarrotada de lembranças e o céu rendado de tela não me permitiu te oferecer asas. Não posso ver daqui, pela janela fechada a alegria nos teus olhos pelo voo dos teus pássaros.

… que marítimos não atravessam para meu rio.

… que brigam com os meus

… que migratórios não atravessam o oceano.

… que os meus voam rasantes com medo do voo perto desse abismo.

… que é essa solidão…

que moram na árvore morta onde não podem fazer ninhos nem migrar para te oferecerem asas.
… que descobrem que a estação muda de acordo com o destino do quintal que não alcança a maresia que alimenta o jardim.

Mariana Gouveia

Livros · Marítima · Mariana Gouveia · O lado de dentro · Scenarium Livros Artesanais

Beda – Oceânica

Ela, de terra firme
conservadora
Eu, de devaneios
lunática, aérea
Conta-me coisas de oceano.
Eu, recebo coisas do mar e mergulho entre corais, estrelas e ouço as ondas que vieram pelo ar, em conchas que traduzem para mim, a voz do Índico.
Ali, no meu quintal, o mar bradou silêncio. Calou maresia. Sufocou grito.
Lá no céu dela, a vida passeia no azul em asas.
Eu, tão lá e ela tão aqui.
Eu tão dentro dela e um oceano imenso de possibilidades.

Ela, mistura de ansiedade, contraditória.
Eu, infinitos delírios, às vezes.


Mariana Gouveia
Agosto é o mês de mar e de Beda.
Participam junto comigo:
Lunna Guedes – Obdúlio Nunes Ortega – Darlene Regina – Mãe Literatura – 
Suzana Martins – Roseli Pedroso
O lado de dentro
Scenarium Livros artesanais
*imagem: Quoc Dinh

Mariana Gouveia

Eu era peixe.

A vida era você, em todos os artigos perfeitos
em pretérito e sede de mar. Talvez por isso,
o cheiro do mar me traga seu corpo
sabe a sal, o dialeto marinho em meu corpo
Agridoce,
a doçura da alma

 

Dou – te o desgosto da falta
Essa ausência que você tatuou debaixo da água
onde eu era apenas letra muda e absoluta
Sinfonia abafada nas ondas de a – mar.
Você era isca

eu, era peixe.

Mariana Gouveia
Agosto é o mês marítimo e de Beda
Participam junto comigo:
Lunna Guedes – Obdúlio Nunes Ortega – Darlene Regina – Mãe Literatura –
Suzana Martins – Roseli Pedroso
*imagem: Khaterina Plotnikova

 

Divã · dos diários

Na minha sala tem um canto de mar…


Hoje, acordei com ele invadindo a sala toda… já não era só o lado poente, dele.
Tomou conta do jardim. As pétalas salgadas cheirando a pele, sorriram.
E o mar cantou suas ondas bravias no interno de mim… e de maresia cobriu meu nome.
De improviso o oceano me cobriu inteira.
Às vezes, com as mãos em conchas o mar me banha…
Em alguns momentos – ele recua.
Mansamente recua e me deixa cheia de saudades, mas plena de viver.

Mariana Gouveia
Diário das Quatro Estações
Cadeados Abertos – Scenarium Livros Artesanais
*Imagem: Mira Nedyalkova

Mariana Gouveia

Suposição

Quando mergulhei e não sabia
Eu já era louca de mar
Marítima – e mesmo sendo fonte de rio –
salguei com meus lábios o corpo que desenhava na mente

Tracei o rosto dela em delicados toques enquanto
olhava o retrato

Quando mergulhei e não sabia nadar
eu já era parte do oceano dela e já não podia fazer mais nada a não ser
amá-la

Mariana Gouveia
Ph: Erikmadigan Heck

InspirAção

Não te verei mais…

há o mar a esvaziar
há o céu a vestir
o teu rosto atinge já as árvores
e durante quinze séculos
procurarei o teu riso
sob os objectos saqueados
não te verei mais


há a lua a recolher
há o espaço e os outros espaços
a abrigar nas minhas veias
os teus joelhos deslizam sob o rio
as tuas clavículas brilham
sobre a pele das falésias
não te verei mais

há a morte a enganar
há o planeta a morder
com os mil dentes que me deu a ausência

Alain Bosquet
Ph: Tumblr