
Querida minha,
O dia acontece sem demora. A chuva antecipa a vagareza nos gestos.
O guarda-chuva quebra e o vento leva o pedaço rumo ao muro gigante da rua de cima.
E eu me lembro de você sempre que alguém assovia uma canção conhecida – que liga a tua à minha e faz com que o som pareça ecoar dentro de nossa história.
O acaso, é essa fotografia que vejo dependurada na parede e tem suas iniciais gravadas no peito, enquanto a trovoada ecoa lá fora… As gotas, trovões e um pedaço do céu a alaranjar no Oeste – são gritos de sua alma na minha.
Ainda sinto o tatear de suas mãos a tocar-me com o desejo nos gestos. Vejo vestígios de um sapato na enxurrada e teu sotaque a relembrar uma curva do mar em que os calçados continham liberdade de alguém.
Bebo a chuva na palma da mão. A madrugada tem o dom de perdurar dentro das manhãs sonolentas. O sabor agridoce na boca dos teus sabores em mim. A leveza da pele úmida de vontades e ainda o encontro que não veio – e eu apenas o imagino.
Na volta, a chuva já se foi e o dia tem aspecto de inverno. Apenas a palavra da estação vibra em mim e penso nos instantes mágicos madrugadores que a gente viveu.
Na memória, sua pele trouxe a leve ironia das manchinhas nas costas. Nem era de Deus essa pele com pintas, onde desenhei nas pontas dos dedos o mapa imaginário do teu lugar. Sinto que estou em você, e pensando nisso me aninho em teu colo como miolo de flor.
Me coloquei dentro das histórias de um outro país que você já visitou. Não era seu perfume que exalava… Era a rua de alguma cidade estranha e suas lâmpadas a iluminar as sombras nas calçadas; sou levada dentro da história e respiro a canção…
Lembrei-me da dedicatória de um poema seu. O vulto das suas letras em carvão quase desenhando corações nas rotinas do dia. Fui me desmanchando nas suas poesias como líquido que escorre afoito feito rio que deságua no mar…
Era pouco, tão pouco ali o mar – tão imenso em seu alcance com o céu – a beijar o sol com suas rotinas de aves e gaivotas. Era pouco e era tanto e quanto aquele rio pedinte de toque, de encontro. E no pulsar das margens que o ladeiam, o suspiro, e era tanto – um mar de saudade – um rio de água doce de vontade nos gestos dos dias.
O avesso do mundo é essa lonjura nos mapas que vi nos livros de histórias onde te invento uma história com final feliz para nós duas.
Beijo
Mariana Gouveia
Carta publicada na Revista Plural Erótica – Scenarium Plural Editora
Agosto 2019
*imagem: Jonas Hafner