Das palavras das cartas · Efeito borboleta · infinitamente · Mariana Gouveia

 Um dia destes. Dizem que é quando menos se espera.

Mãe,

foi no dia de hoje, há 40 anos atrás que a gente conversou pela última vez. Ainda me lembro das frases do diálogo e como aquela noite era um prenúncio de sua partida.

Dizem que o universo sempre nos envia recados, mas eu era menina ainda, e só sabia ler poesias e não entendia nada de sexto sentido. Ou até entendia. Mas, não queria saber.

Sabia que isso podia acontecer em qualquer dia. Um dia destes que a gente quer rasgar do calendário. Dizem que é quando a gente menos espera. Em uma noite, estávamos falando de lua, estrelas e mariposas e no outro, você já era estrela.

Naquela noite a gente ouviu Tristesse que era tema da novela Sétimo Sentido – que passava na época e você amava – em uma radiola antiga. A calçada alta fazia a rua parecer distante e falamos de sonhos – os meus – e de como você se orgulhou ao ouvir minha estreia no rádio. Eu, uma menina ainda nos meus quase 16 anos estreava um programa de rádio. Era seu maior sonho me ouvir através das ondas do rádio. Falamos dos meus irmãos… e você dizia como eu deveria cuidar de cada um. Falamos de silêncio, de como as palavras nos moldam, nos podam e de como eu deveria dizer no rádio para atingir os corações de quem me escutar.

Depois, veio a mariposa enorme e pousou em minhas mãos e você falou sobre acolhimentos, superação e coragem. No outro dia, eu era puro medo. Medo de seguir sem sua orientação. Medo de me perder nas escolhas e medo da sua falta.

As coisas nunca mais foram as mesmas, mãe… As coisas mudaram e mudam o tempo todo e de vez em quando a coragem me falta nesses vãos da vida. Mas, eu sigo firme aqui… e repito várias vezes as frases que dissemos naquela última noite sua nessa vida.

Você deixou poucas fotos e a gente quase nem tem registros de momentos juntas. A foto que ilustra essa carta tem você e seu vestido florido, em preto e branco – o primeiro, depois de um luto quase eterno desde a morte do meu avô – mas que me lembro das cores lilases das flores e que já costurei vários iguais, só para te sentir mais perto.

Sabe, mãe… eu agora crio histórias, e o rádio ficou apenas nas lembranças. Mas, eu vivi muitos anos dele. E conquistei pessoas que até hoje rondam minha vida. Você não ia acreditar que hoje, através da internet uma rádio pode ser ouvida em qualquer canto do mundo. As coisas não são mais as mesmas. Tantas coisas você deixou de viver e sentir.

Mas, sabe, mãe… de uma coisa você estava certa. As minhas mãos se tornaram pouso para muitas coisas. Aves, pessoas, insetos, borboletas… tudo que você pensar, pousam em minhas mãos. Basta tê-las estendidas.

Eu ainda deixo as portas abertas para o vento entrar. Eu ainda assovio para chamar o vento… eu ainda olho para o céu buscando imagens em nuvens e eu ainda falo com você em voz alta, como se estivesse aqui, por que sei que de alguma forma você sempre estará… e eu ainda sigo os ensinamentos seus para ser uma pessoa melhor.

Te amo infinitamente!
Mariana Gouveia

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10 comentários em “ Um dia destes. Dizem que é quando menos se espera.

  1. Uma narrativa por momentos num manto de nostalgia pela MÂE já ausente . Simplesmente comovente . Deixou-me entregue a recordações da minha Mãe na minha solidâo e sem querer regressei à casa que me desabita . Um abraço deste lado do mar Maria

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