Cuiabá,
Não sei se minhas lembranças podem evocar o que vivi nesses 40 anos. Posso retratar em fotografia – ou em diários – o que cada dia ficou em memória, como um negativo esquecido na câmera… e de repente, mostrar meu lugar.
O caminhão com a mudança, os irmãos com olhos de curiosidade – o calor sufocante – a rua morna, de calçadas altas para compensar o terreno baixo.
Lembro-me das palmeiras imperiais – que fui descobrir o nome tempos depois – que circuncidavam a avenida principal. Vi um cinema… com seus folhetos e filmes – Annie – e o sol… quase angustiante a brilhar. E um mês depois, exatamente um mês depois, minha mãe se vai e você me acolhe. Aceita meu choro, minhas dores, meu desassossego em suas ruas e me guia nas madrugadas insones.
Você sabe que me abraçou como cidade e como se eu fizesse parte sempre – dos daqui – me mostra as ruas e seus ipês, o riso do moço do cemitério, os colos dos imigrantes japoneses, a rua de terra a me acarinhar os pés enquanto tantas vezes fui choro. Você foi só acolhida. Foi mãe.
Fui crescendo e acumulando dores – esquecendo aqui e ali – e descobrindo vocações. Realizando sonhos – deixando sementes – e retrocedendo… em outros momentos, avançando. Relembrando passagens… resgatando memórias. Sendo guiada pelos seus.
Descobri o quanto você é acolhedora… o quanto você é calorosa – na extensão suprema da palavra – e de quantos os seus moradores te representam. A vida retratada em tantos lugares que fui para chegar até aqui.
Quando aqui cheguei eu era a menina que sonhava com a família unida e que aquele sol que ardia na pele, pudesse acalentar a alma da menina que perdia a mãe. O tchá com bolo… espiá lá! – o sotaque estranho e bonito – os doces, os santos e a voz que o rádio levava rumo afora – o sonho da mãe refletido nas ondas médias em algum zyk 964, indicando a posição geográfica do seu lugar. As cartas ganhando forma vida afora.
O calendário me lembra os quarenta anos. Eu os vivi em tanta intensidade, em tantas fugas, em tantos reencontros e é como se sempre eu fizesse a viagem pela primeira vez. O relógio da matriz a ecoar as horas… os dias e esse vento quente que traduz seu nome.
Hoje, o seu céu tornou-se meu céu… as nuvens – tão minhas e de ninguém… em uma liberdade de ser. Eu andei por aí, e nos becos, descobri que tua força não tem mais a ingenuidade de menina. Você cresceu. Tomou proporção de gigante e seu tamanho é efêmero porque ainda guarda a singeleza do teu linguajar, se tornou maior do que podia aguentar e ainda assim permanece intacta na simplicidade.
Quando meu olhar, do alto, te alcança inteira me vejo tão pequena… miúda diante de tua grandeza. É como se seu abraço me envolvesse e minha gratidão ecoasse para além das letras.
Obrigada por tanto amor – e tantas dores que me fizeram ser quem sou – sempre!
Mariana Gouveia
Das palavras das cartas
Agosto é o mês dos 40 anos que cheguei em Cuiabá e de Beda.
Participam junto comigo:
Lunna Guedes – Obdúlio Nunes Ortega – Mãe Literatura –
Suzana Martins – Roseli Pedroso
Sempre vivi em São Paulo e não me vejo morando em outro lugar. Mas algumas de minhas fugas empreendi para o litoral. Gosto do mar. Você deu de viver no mar de horizontes amplos. O certo é que o desenvolvimento (ou o que chamam de desenvolvimento) pode vir a alterá-los. Já conheço esse processo por aqui, na minha periferia. Lindo texto, Mariana!
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Obrigada, Obdulio. Não fui eu que escolhi Cuiabá… Foi ela que me escolheu.
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Quarenta anos em Cuiabá e vinte anos meus em Sampa… ai ai ai, essas nossas rotas. rs
Ps. Belissimo texto
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Grazie, bambina! Viu como eeses mapas se cruzam?
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