Das palavras das cartas · Mariana Gouveia · Scenarium Livros Artesanais

Cartas para abril – uma história que se repete:

eu e sua rua

Ana,

Nessa noite densa e estrelada eu te escrevo… para te contar que passei na sua rua ontem e a cerca de madeira está cheia de flores da trepadeira que você plantou. Esta cena já se repetiu algumas vezes e dependendo do caminho faço, é inevitável passar na frente a casa que você morou e que nós moramos, compartilhamos e vivemos os mais bonitos instantes de amor.

Ainda te vejo na soleira da porta com as mãos acenando despedidas, riso solto e olhos brilhando. Em dias de muita saudade evito a rua do meio e dou a volta no quarteirão que é o dobro do caminho… Às vezes, me falta estrutura, querida minha.

Misturo versos de poemas aos instantes que vivemos… os passeios de domingo e suas histórias cheia de humor… Não era atoa que você pensava no homem de Paris que perdeu o sapato bem na sua frente. E das vezes que sua visita em um casarão em ruínas te fez correr tanto de susto… e cruzar com o mesmo homem que lhe cobrava o sapato — como alguém perde um sapato em Paris? — e seu riso ecoava vida afora…

Eu ainda me lembro dos vários rituais que repetidos e das cerimônias — que eram sempre as últimas — e vibrávamos com o sol nascendo como se nunca mais isso fosse acontecer. De como Marte era tão visível em certas noites que seriam banais e se tornaram únicas porque você levava Marte em seu nome como se ali sempre fosse o seu lugar, mesmo estando anos luz distante daqui, de mim, ou dessas histórias feitas de fragmentos…

Eu ainda tenho na memória seu olho através da cortina, e sua presença tão forte e potente em mim, na casa da Kaori e do teu monólogo ao meu ouvido no telhado de minha casa, no bairro antigo; quando dizia que Marte estava ao alcance de suas mãos e que poderia me dar quantas estrelas eu quisesse.

Eu nunca quis muita coisa para além do seu riso, da sua voz lendo poemas, dos ecos dos seus passos no corredor e das canções desafinadas de quem canta apenas o amor… Era isso que eu queria. Falar de Gadu, de Gil e Caetano. Da chuva, de um Japão com as cerejeiras em flor que nunca conhecemos e do barulho do rio a desaguar nos afluentes do Pantanal.

De frente para a cerca cheia de flores busco essa tentativa de te observar e você já não me vê ou até vê, nesse abandono de corpo entre o celeste e o seu quintal… Ouço vozes para além do portão. Alguém ri e como aconteceu em tantas vezes, me confundo. A cena está vazia e dentro de mim você é esse poema que tento domar para além dos muros do meu quintal… em sua rua, que é onde me perco, como se o vento não pudesse levar as minhas palavras e o meu amor até você.

Não é você na soleira da porta… é apenas a minha imaginação chamando pelo seu nome para além do amor.

Mariana Gouveia
Cartas para abril postada no blog da Scenarium Livros Artesanais
É abril e é mês de b.e.d.a – blog every day april
Participam comigo:
Lunna Guedes – Suzana Martins – Roseli Pedroso – Obdúlio Nunes Ortega

7 comentários em “Cartas para abril – uma história que se repete:

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