azul em qualquer céu. · Divã · do verbo voar · Marítima · Mariana Gouveia

Era uma vez, um rio e a vontade de mar.

Ph: Pinterest

Há solidão que olha o mar como se fosse rio e há dias em que o outono é puro inverno na densidade das coisas. O intervalo dos dias faz qualquer dia ser domingo e sua monotonia sem programa especial na tv e o céu cinzento a desenhar chuvas para os lados do sul.

Eu passo todo o dia sobre o rio e ele ecoa a vontade de mar e seus pássaros acendem em cantos a pena da gaivota esquecida onde antes era o pássaro de todo dia.

A natureza mente em seu estado de leveza, mesmo que o ritmo do vento seja assombroso em algum canto. Uma melodia feita dentro do assobio lembra a canção que ocupa a mente e o coração… Era preciso tanta coisa para ser tudo.

Os voos nascem na palma das mãos. Viram pulmões para o respirar alado. O Universo é feito de asas e o bater delas causa um caos onde o caos já existe.

O mundo traça uma paralela entre o acaso e a solidão, que é um bicho feito de asas e tem um relógio bomba a explodir feito asas quando voa e pousa.

Mariana Gouveia

De todas as estações · Divã · do verbo voar · dos diários · Mariana Gouveia

Era uma vez, a solidão dos cantos das aves.

Há solidão que é como um pássaro fixo na árvore sem folhas… os galhos a pender como garras a invadir o espaço e a alma a ouvir a canção que toca ao longe.
A estação invade a tarde e o coração ocupado demais para amar.

Há dias em que caminhamos para dentro da gente, refazendo caminhos, desenhando novas histórias .

O outono despertou aqui e as folhas caem como se ficar ali, na árvore fosse penoso demais e o chão fosse o aconchego do colo. O outono aparece nesse sábado morno quase às vésperas do inverno, que não virá também – eu sei.

As horas de fim de tarde trazem com elas um vento frio com o qual não acostumo nunca.

Há risos de crianças na rua, as pipas bailam no sol quase morrendo e o pássaro a gorjear na árvore morta, como se quisesse companhia enquanto descubro que seu canto pesadamente no galho, em um céu quase cinzento, quase noturno a anunciar chuva, e palavras que fogem dentro de mim só são ditas na solidão dos cantos das aves. Solidão é uma ave a pousar na árvore morta.

Mariana Gouveia

Das rotinas · Divã · Mariana Gouveia

A intenção do silêncio no barulho das coisas

Ph: Tumblr

Depois dos dias de silêncio passou a inventar histórias… Ouvia canções em idiomas que não conhecia e nem sabia a tradução.
Era uma maneira de matar o silêncio das coisas.
A bailarina de porcelana a enfeitar a mesa do canto. O elefante de vidro fosco – sempre mudo – ao lado da vitrola antiga, encontrada em perfeito estado no brechó da amiga.

Repassava os discos de vinil como se buscasse motivos para o acontecimento das coisas.
O encanto guardado no baú da memória.

Depois dos dias de silêncio passou a escrever cartas que nunca enviaria – com exceção de uma, relatando o fim – e nunca seriam lidas.

Depois dos dias de silêncio passou a ouvir as folhas e o pouso da libélula no varal de roupas e a condenar o barulho dos cães na rua debaixo quando percebiam que o homem da reciclagem se aproximava com sua carroça e a cantoria que acordava o silêncio das coisas e depois disso tudo era barulho dentro dela.

Mariana Gouveia

Divã · Mariana Gouveia

Dos dias de saudade

Dos dias de saudade

 
 

Morri nas gavetas sangrentas da memória.
Havia ali uma faca cortando minha pele e a respiração para e a vontade extrema de gritar seu nome. O quintal é pouco para a loucura que antecede milimetricamente dentro de mim.
Rabisco seus nomes – todos aqueles que eu te chamava – nos muros.
Desenho corações tortos e o céu cai em uma canção que entoa sem parar.
Não é o dia, não é o dia – eu repito – e as crianças riem de mim.
Alguém desavisado de minha loucura pede ajuda. E meu olho segue o pássaro sem asa. Sou levada e não canso de falar.
Todos os dias eu aconteço nas memórias dela. Todos os dias ela me mata na memória dela.
Toda manhã eu recomeço a rotina de reviver dentro do que eu lembro.
Há um corredor extenso e a moça vestida de azul me aplica algo que aplaca a fúria da alma.
Ela diz isso rindo e dou meu braço para o líquido que alivia a dor física. E a alma apenas quer o riso amoroso que um dia ela me dedicou.
Perguntam-me o nome. Tão vago, tão distante, por pura burocracia já que todo mundo me conhece e sabe de minhas loucuras plenas.
– Me chamo flor – eu falo – o que atrai o riso na moça vestida de azul e que repete comigo o nome pelo qual me chamam.
Não, seu nome é esse. Flor é a que mora dentro do seu coração.
E canção repete:

“Pode ter meu número
Pode tirar meu nome
Mas você nunca terá meu coração”…

e eu repito: porque meu coração é dela. Morro outra vez nas gavetas vazias das lembranças dela.

Mariana Gouveia
É abril e é mês de b.e.d.a – blog every day april
Participam comigo
Lunna Guedes – Suzana Martins – Roseli Pedroso – Obdúlio Nunes Ortega
*art: Christian Schloe

Divã · dos diários · Mariana Gouveia

Tenho um dragão que come na minha mão.

O dia rompe as rotinas do nada. Era hora de espionar segredos. Na rota dos olhos, o espelho. Denuncia o cansaço de não dormir.
Ela anota. Eu anoto. Rasgo palavras que havia escrito. Uma espécie de silêncio no ar. Tão gritante e ao mesmo tempo, ensurdecedor.
Ando até a janela. O horizonte mostra a ilusão que vivi.
As frases ecoam na cabeça. Divagações do que poderia ter sido diferente e de como ainda brinca quando fecha etapas.
Escrevo o nome dela na janela do agora. Quase grito, quase chamo. Calo.
Ela anota. Eu apago. Rasuro. Sublinho. Acho bonito um nome sublinhado.
Desenho um coração junto. A neblina de fora oferece a opção da escrita.
Um homem pinta um portão de verde. Uma joaninha cai na lata de tinta. Eu a salvei antes que a tinta marcasse as asas.
Ela me olha. Espia os sentimentos que me atinge.
Falo de coisas surreais. Tatuei o nome dela no meu peito. Tenho um amigo imaginário que conversa comigo. Me diz que se chama Tempo e que a melhor escolha da vida, é viver. É um dragão que vive na minha mão. Sublinho a palavra tatuei. Ela ri.
Lembro do riso dela. Lembro de tanta coisa que fizemos juntas.
– Segura ele. Nunca vi um dragão.
– Ele é inofensivo. Só vive no meu imaginário.
Ela anota.
Fala da boneca de milho que era amiga dela quando era menina.
Penso na rapidez das horas. Ela olha o relógio na parede.
Confirma o diagnóstico: Falta de lucidez.
Coloca um comprimido vermelho na minha mão. Meu dragão come.

Mariana Gouveia – Divã
Das fragilidades secretas

Divã · Mariana Gouveia

Ecoa

Ph: Savannah Daras

Ecoa.
Era quase vento sem ter asa.
Era quase pele sem ter poro.
Às vezes, é preciso vento.
Um poeta completa anos e eu, mesa.
Ela, cama…
Libélula na boca em asa
e gozo.

O vento mora aqui
e a maresia invade as cortinas.
Ganha rumo na risada dela.

Quebra regras,
cita nomes.
Me desenha em círculos
e daí eu sou só poema na palavra dela.

Relembra o dia
em memórias todas.
Canto ela nas nuvens
Pego ela no ar.
Respiro a leveza no encanto dela.
Depois disso, prazer é meu nome

Mariana Gouveia
Divã

Divã · Mariana Gouveia

Kandinsky e Matisse

Ela trocou o quadro de Kandinsky de parede. Agora fica atrás do sofá, então não posso ficar olhando para ele como antes. Em compensação Matisse me encara por dez longos minutos antes de entrar.

– Parece que faz zum século que não venho aqui. Mudou tudo. – falo comigo mesma, mas ela escuta.
– A cor já estava desbotada e fiz algumas mudanças na entrada. Não gosta de mudanças? – ela pergunta.
Respondo que algumas mudanças me atravessam e meus olhos fitam a janela, Reparo que a cortina não é a mesma – a sóbria de sempre – e que o sol entra por uma fresta.

– Matisse? – aponto o quadro na parede lateral, onde antes havia um vaso grande com uma folhagem estranha que não está mais lá em canto algum.
– Você entende de arte? ela me pergunta com atenção voltada para as anotações.
– Que nada! Conheço algumas, mas notei Matisse e Kandisnky na sala. “Um único tom não é nada em termos de cor; dois tons são um acorde, são a vida.” – falo quase em sussurro.
– Oi?
– Frase de Matisse – digo – e a pintura me lembrou dela. Gosto das cores. É isso. gosto das cores.

Ela anota e eu suspiro. A cortina balança, um vento atravessa a janela semiaberta. Falo do tempo, das coisas que penso, de como o mês ganha velocidade das horas e do azul cobalto da parede da frente.
– Dá para criar poesia hoje? – ela pergunta com um sorriso terno…
– Acho que consigo falar sobre o azul cobalto e das cores.
Ela ri enquanto me levanto e vou… com a frase de Matisse na cabeça e o azul cobalto na inspiração.

Mariana Gouveia
Divã

Divã · do verbo voar · Mariana Gouveia

Às vezes, é preciso enfrentar o imaginário.

Ph: Omerika

Ela senta. Anota.
– Sugiro que fale mais sobre isso.
Disparo a falar sobre possibilidades de espera.
O mundo é um lugar comum. Dispensa atenuantes de comparação.
O sonho de conquistar o mundo cabe em um abraço.
Meninos espreitam a solidão, enquanto espanto pássaros no jardim.
Levo eles para o céu. É a estação que sopra em direção do voo.
Coisa de menina dentro da estação..
Despeço do homem na porta da esquina.
Lembro do corpo dela dentro de mim.
Lembro dela dentro de mim.
Eu. Dentro dela.
A pele com cheiro da maresia. Ela todo mar. Direção da minha nau. Ela, meu porto.
Divago sobre vento. Falo da alusão ao que minha mãe dizia:
– Vento é o Espírito Santo. Assovie e ele virá.
Faço isso só pra demonstrar. Uma brisa suave mexe o cabelo dela. Anota.
Imagino roubar as anotações dela.
Ela me pergunta sobre o que penso do imaginário – suspiro –
– voos…
– Pássaros?
– Asas. Liberdade. O voo não é solúvel no ar. De toda queda. Só às vezes, eu quero o chão. Há dez maneiras do imaginário agir.
-Liberdade?
– De dançar, voar, pousar…
Empurra os pássaros com a mão.
Ela anota. Pega na minha mão. Olha na direção da janela.
– Me mostra.
E começa a falar de ninhos.

Mariana Gouveia
– Divã

Divã · do verbo voar · Mariana Gouveia

Às vezes, é preciso enfrentar a verdade…

Ph: Amanda Mason

Aquela que dói no peito e bate na porta avisando: não tem jeito.
Eu anoto.
Não antecipei o contexto. Apenas repeti. E previ.
Era outono nas manhãs do nada. Um pássaro morre no meu quintal. Tento fazer a simpatia que minha mãe fazia quando eu era criança. Coloco o pescoço do pássaro em volta dele mesmo. Molho a cabeça dele e depois o coloco debaixo de um balde. Dou as três batidas e mais três. Já não tem vida ali.
Já não há voos na minha manhã sombria. Pensei que seria véspera de asas. Acabou.
– Tem dificuldades em lidar com o que acaba?
– Não! Sou áspera na palavra respirar. Acato. Aceito. Sou submissa na atenção dos dias. O fim é sempre uma porta para um novo começo.
– Mas?
– É a reconstrução de um tecido que já foi rasgado. Ditados populares de séculos – Não deite remendo novo em pano velho – e por aí, vai. Diante da verdade possível fica um vão de medo. Planejei o dia de hoje em uma conversa simples, limpa, feliz e pensei nisto com o coração, lembrei de todas as conversas que quis ter, cafés, sorvetes, sombras e varais repletos de palavras e libélulas penduradas na palavra acariciar.
– E não aconteceu?
– Não. Tive de lidar com a morte logo cedo.
Seria possível remendar sonhos?
Anoto eu mesma a minha resposta.
A verdade é que às vezes, é preciso enfrentar a verdade.
Há um pássaro vazio de voo na minha mão.
Hoje, ela não fala…

Mariana Gouveia
– Divã

Divã · Mariana Gouveia

Sei o papel de cor. 

 Mas não chego para uma história. 
Golgona Anghel

Ph: Pinterest

O amor, ao entrar, foi logo me perguntando:
– Leu o manual?
– E alguém lê o manual? Ninguém lê.
– E os estatutos, leu?
– Estatutos? O estatutos são lidos somente em ocasiões especiais, cujo interessado é o único que não segue o estatuto e só quando ele é prejudicado.

Passivamente, ele senta e desenrola um rol de papel que não tem fim.
E ali, discorreu por horas sobre o decreto que definiria viver um amor e que todas as regras sejam cumpridas e pronto.

– Como pronto? E esse bater acelerado do coração que parece uma bateria de escola de samba? E esse alvoroço de arrepio na pele ao pensar nela? E esse atirar-me do abismo em direção à ela sem saber se há proteção.
– Leia o manual – é a resposta única – Leia o manual. Siga o estatuto.
– Confesso que seguir as regras nunca foi meu forte. Não que seja dada à rebeldia. Mas, sigo sempre o coração.
– Quando se começa a amar, há mais pessoas envolvidas e na maioria das vezes, mais de uma. Nesse caso, você quebra a regra nº 1 : No amor, ninguém pode sofrer.
– Sofrer é inevitável. Faz parte do processo de apaixonar. O amor não pode ser de posse, por isso, as pessoas sofrem.
– Leia o manual. O amor é único em si mesmo e a paixão, efêmera. Está no Artigo II – não confunda paixão com amor.
– E o que fazer com esse sentimento estranho, que encanta, que grita e faz com que a gente sonhe de olhos abertos? E lá de novo eu, ponta a cabeça, como em um trapézio sem rede.
– Que nome se dá a esse sentimento?
– Quando você o pronuncia o nome dela o dia ganha cores, a vida fica mais leve e tudo passa a ter sentido. O nome disso é encantamento e pode ser um passo para o amor. Está no manual. Artigo 3. Parágrafo Único: É permitido se encantar pelo que é belo, pelo que seduz, pela riso e pela poesia de cada dia. É permitido o encantamento.
– Encantamento tem manual?
– Só quando ele se transforma em amor.

E já saindo de mansinho, repete mais uma vez:

– Leia o manual!
– E alguém lê os manuais?

Mariana Gouveia.