dos diários · Mariana Gouveia

em cada fresta da noite eu só queria a pulsação do sol.

A noite ainda não tinha rompido a renda salmão das cortinas e você já era saudade.
Quando te falei das estações do tempo e da tranquilidade que sentia, não sabia que uma noite demoraria uma vida – em pouco tempo – e que os dias em que você surgia, a manhã possuía o sagrado do amor. Na época levei-te pela mão rumo ao prazer. Minha voz deu vez à mesma pergunta, e cadê? – chamam-lhe saudade… alguém disse. E houve dias em que endoideci no quintal. Busquei a palavra “volta” nas cartas, no horóscopo, no relicário – até rezei – e cantei as músicas que nem eram nossas, mas que falavam de amor. Havia a mensagem que eu não apagara e li e reli a noite inteira na sobreposição do dissolvido desejo e nas palavras doces que inventamos.  Eu só pensava no teu encanto pela flor. Girava a vida em torno do sol. Foi quando converti os silêncios e ouvi, gritantemente, a pulsação do sol… em cada fresta da noite eu só queria a pulsação do sol.

Mariana Gouveia

Divã · dos diários · Mariana Gouveia

Tenho um dragão que come na minha mão.

O dia rompe as rotinas do nada. Era hora de espionar segredos. Na rota dos olhos, o espelho. Denuncia o cansaço de não dormir.
Ela anota. Eu anoto. Rasgo palavras que havia escrito. Uma espécie de silêncio no ar. Tão gritante e ao mesmo tempo, ensurdecedor.
Ando até a janela. O horizonte mostra a ilusão que vivi.
As frases ecoam na cabeça. Divagações do que poderia ter sido diferente e de como ainda brinca quando fecha etapas.
Escrevo o nome dela na janela do agora. Quase grito, quase chamo. Calo.
Ela anota. Eu apago. Rasuro. Sublinho. Acho bonito um nome sublinhado.
Desenho um coração junto. A neblina de fora oferece a opção da escrita.
Um homem pinta um portão de verde. Uma joaninha cai na lata de tinta. Eu a salvei antes que a tinta marcasse as asas.
Ela me olha. Espia os sentimentos que me atinge.
Falo de coisas surreais. Tatuei o nome dela no meu peito. Tenho um amigo imaginário que conversa comigo. Me diz que se chama Tempo e que a melhor escolha da vida, é viver. É um dragão que vive na minha mão. Sublinho a palavra tatuei. Ela ri.
Lembro do riso dela. Lembro de tanta coisa que fizemos juntas.
– Segura ele. Nunca vi um dragão.
– Ele é inofensivo. Só vive no meu imaginário.
Ela anota.
Fala da boneca de milho que era amiga dela quando era menina.
Penso na rapidez das horas. Ela olha o relógio na parede.
Confirma o diagnóstico: Falta de lucidez.
Coloca um comprimido vermelho na minha mão. Meu dragão come.

Mariana Gouveia – Divã
Das fragilidades secretas

Das palavras das cartas · De todas as estações · Diário das quatro estações · dos diários · Efeito borboleta · Mariana Gouveia · Scenarium Livros Artesanais

É a época das chuvas no telhado

Fui ao baú desenterrar poemas. Chove a manhã toda e se estende para a tarde. Ouvi Gadu e sua voz a ecoar a palavra que era poema dentro da melodia. Ouço os barulhos da casa… os pingos da chuva no balde a guardar momentos e a luz chega pela janela… sou esse cotidiano que chove todo dia, e as flores bebem a água que cai. Ainda visto o pijama da noite, e o dia segue seu rumo de hábitos, manias e defeitos… O pássaro de todo dia pede abrigo na escada enquanto lá fora a vida acontece e eu sou um nome que habita dentro da solidão. Lavo o uniforme sujo e soletro o canto da ave que pousa perto de mim.

Vasculho os diários guardados e leio livros que estavam ali, parados, como a esperar para exalar histórias e à volta são as paredes e posso passar da sala para a cozinha enquanto os trovões ecoam e parecem dizer que aqui o universo tem um portal estranho. Revisito os casulos que se preparam no pé de orquídeas silvestres. Cuido para que eles não molhem. Sou essa metamorfose que cresce e muda a cada dia.
Desfolha em asas a borboleta que nasce. Está aqui e a sinto absolutamente indefesa diante dos dias. Da asa escorre o líquido da vida – é apenas um inseto… alguém diria – em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir uma coisa das outras coisas e ela está aqui, sendo pouso em minha mão e neste momento eu sei e sinto ao certo o que significam certas palavras como a palavra paz.
A vida segue líquida dentro do dia e prossegue nos gestos que faço apenas observando a chuva dentro da canção de Gadu.

Mariana Gouveia
Desvios para atravessar quintais
Diário das quatro Estações
Scenarium Livros Artesanais
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De todas as estações · Diário das quatro estações · dos diários · Mariana Gouveia · Scenarium Livros Artesanais

Tenho uma solidão para esse nome das coisas.

Tenho uma solidão para esse nome das coisas.

Virei perfume dentro das suas palavras. Vi uma moça da aldeia com borboletas no corpo. Era feito de sol essa saudade. O jardim endoidou de vez quando percebi o vazio por detrás da janela. O calor assolou o cerrado e a meteorologia colocam vermelho puro no mapa daqui. O lugar de mim esvazia o peito e estende a mão, não sou mais além de sombra onde a asa não me abriga.

Escrevo cartas antecipando primaveras… a impressão do dia seguinte é quase logo ali, no outro mês, já repetido exaustivamente no sistema. O desejo tão líquido quanto a sede – falta água – e a fome de tocar sua mão, tão marítima dentro desse oceano seco de rio.

A ventania consome essa vontade de pouso, onde meu quintal respira maresia nos cantos do muro.

Mariana Gouveia
Desvios para atravessar os quintais

Scenarium Livros Artesanais
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Diário das quatro estações · dos diários · Livros · Missivas de Abril · Scenarium Livros Artesanais

Era uma vez, assim

Tem a flor estampada no vestido, o mês e seus dias de chuva atrapalham a visão da Lua. A rua de cima tem uma canção no repeat. Escrevo cartas pela metade. Folhas inteiras de frases inacabadas. A sensação de falta de ar no limite. O vento arrisca pela cortina e a solidão é esse emaranhado de ciclos repetitivos. A rua de cima tem dias de vazios nas árvores — cabia a brancura em qualquer canto — e as nuvens em espiral causando a plenitude do céu. Era uma vez, assim, a vontade de ser. Tem dia em que as histórias ficam sem o final.

Mariana Gouveia
Desvios para atravessar quintais
Scenarium Livros Artesanais

Das palavras das cartas · dos diários · Mariana Gouveia · Scenarium Livros Artesanais

Carta grifada

Querido diário,

Escrever é parte de um ritual de todo dia. Às vezes, o papel e caneta ficam obsoletos no canto da mesa e a opção é o teclado.
Diante do desafio de escrever sobre as palavras mais comuns do meu vocabulário me sento e repito o mesmo ritual. Aí está uma palavra que uso muito – você sabe bem – ritual.

Levanto-me cedo e vou seguir o ritual do café. Ligo a cafeteira – somente nos fins de semana que mudo para o ritual do coador de pano, mas isso, é outra história. Enquanto a luzinha pisca, seleciona o ristretto de sempre.

Depois do café feito, enquanto os olhos passeiam pelas notícias do dia, é hora de viver o ritual do quintal – outra palavra tão comum em mim – com a xícara na mão… quem sabe, mais um café? – você conhece bem essa palavra por aqui. Basta vasculhar as folhas escritas e deve ter em média umas quinhentas mil vezes escritas, ouvidas e faladas – café. A própria palavra quase me define.

Sabe, diário, o quintal me pertence e eu a ele. Molho as plantas, retiro as folhas secas… Adoro varrê-las… a sinfonia que elas fazem é música para meus ouvidos. E vem a palavra música que repito tanto aqui… vamos ouvir uma música? Vamos dançar essa música e assim, a musicalidade alcança meu dia.

Meu bebezinho… e já adianto que falo isso para o Chiquinho – meu beija-flor – que me acompanha em voos quando grito por seu nome. Chamo assim Yoshi também e essa é outra palavra que se tornou comum por aqui: onde anda Yoshi, Lolla? Cadê meu bebezinho? Isso acontece todos os dias e em grande parte da manhã…

Quem chegou? – essas palavras causam grande euforia nos cães, e repito várias vezes, que já é comum.

Falo vento, pensamento e até calor… de futebol… de fisioterapia e você sabe do que estou falando… Os movimentos limitam-me na escrita com você.

Ah, são tantas as palavras que falamos que a experiência se torna estranha. Anotar a mais usada é quase clichê… sabe qual é a palavra que mais eu repito por aqui? E serve para quase tudo que busco e penso: cadê? Cadê pai, cadê Yoshi, cadê Lolla, cadê a lua? cadê meu telefone, cadê minha linha, cadê minha agulha?!!! Isso não quer dizer que eu não seja organizada e não saiba onde guardo ou deixo as coisas… Na maioria das vezes, as coisas estão nas minhas mãos ou ao alcance…Cadê meu diário?

É assim, diário, que finalizo com um beijo e vou ali no quintal ver se tem nuvens com formato de amor.

Beijos,
Mariana Gouveia
Projeto Blogvember – Scenarium Livros Artesanais
Participam juntos comigo: Lunna Guedes – Obdúlio Nunes Ortega – Roseli Pedroso e Suzana Martins

Das palavras das cartas · dos diários · infinitamente · Mariana Gouveia

Grandes ruas de silêncio levam aos arrabaldes da pausa

Isís,

Haverá um dia em que você dirá que a solidão tem a cor dos ipês da rua de cima? Eu sei que sim… E sei também que nesse dia marcará em seu diário que o silêncio é quase esse poema de Emily:

Grandes ruas de silêncio
levam aos arrabaldes da pausa –
aqui não há novas – dissídios,
nem universos – nem leis.

No relógio era manhã, p’la noite
Distantes sinos dobravam –
Aqui não têm base as épocas
para o tempo ser passado

Lembro-me de que me disse uma vez que seu diário é marcado por reticências… essas, representam por vezes coisas que você quis dizer e que guardou antes de pronunciar ou escrever.

Sabe, Ísis, a rua de cima fica em silêncio completo lá pelas duas da manhã. Nem o gato da vizinha da casa ao lado mia, nem o cão da casa da frente ladra, nem o bebê que nasceu há dois dias da casa amarela chora. Eu já estive na rua de cima as duas da manhã. Lembro-me de que fiquei sentada em sua calçada alta e deparei-me com sua janela iluminada. Foi em uma das noites em que perdi o sono e meu muro me deixou sem ar.

Lembra que eu te disse que as flores dos ipês quando caem fazem silêncio, como se segurassem a dor de se despetalarem? Você riu, Ísis… e seu olho brilhou como se tivesse descoberto suas reticências em forma de poesia.

Eu aprendi a falar com você pelo olhar. Te vejo sempre desde os cinco anos e aqueles bloquinhos que a gente anotava conversas e memórias deu lugar aos sinais pelo olhar. Minhas mãos demoraram para entender a libra e o silêncio nos aproximou.

Você diz que eu te levei a poesia e eu digo que a poesia me trouxe você e que aquela menina que se encolhia quando alguém se aproximava, hoje é portadora de risos que abre portas.

Hoje, Ísis, quando penso que você vive em um mundo de silêncio também sei que os sussurros de amor que recebe é mais do que gritos em seu coração.

beijo meu,
Mariana Gouveia
Projeto Blogvember – Scenarium Livros Artesanais
Participam juntos comigo: Lunna Guedes – Obdúlio Nunes Ortega – Roseli Pedroso e Suzana Martins

dos diários · Mariana Gouveia

Eu…

Eu, aos quatro anos na floresta encantada, andando com meu pai vendo um bezerro nascer, a comer uma fruta do conde e a olhar para a minha mãe, tão suave parecendo moldura de quadro, na janela da casa a sorrir.

Eu aos seis anos, com uma boneca de pano rasgada, a perguntar à minha mãe se ela morreu e se vai para o céu como os tios que já morreram.

Eu aos nove anos, com um cogumelo na mão entrava pela primeira vez na floresta adentro, cortei o dedo com o canivete e meu sangue se misturou à terra vermelha e fui batizada pela natureza, é o meu aniversário, estou feliz e as velas do bolo eram as estrelas no céu, e meu pedido era de que a poesia em que eu vivia preenchesse minha vida até o fim dos dias.

Eu aos treze anos sentindo a brisa no rosto, o sol do outono queimava a pele quase numa caricia, havia lido cartas de amor e sentia um fio de sangue quente e a voz da minha mãe a dizer-me que é assim mesmo, filha, agora já és uma mulher.

Eu aos quinze ano era coroada rainha da festa da cidade onde nasci, vestia o vestido bordado por uma fada e todos os olhares me fazia querer fugir e eu sem saber o que fazer. Via meu mundo mudar e a mãe ir para onde os tios já haviam ido e perguntava onde está minha boneca de pano e o cheiro da floresta e meu esconderijo de criança?

Eu aos vinte e um anos, recém-casada, a perceber que a vida real não era o conto de fadas, os pés inchados e a chuva súbita… um filho a crescer dentro de mim e a morte a tomar e eu a me perguntar se minha mãe o recolhia e cuidava dele pra mim.

Eu aos vinte e três anos mãe, a respirar comigo um menino que tinha olhos brilhantes e me fazia acreditar que havia um céu na terra.
Eu aos trinta anos num automóvel, morria de medo de dirigir e enquanto corria por medo de perder o ônibus a minha vida corria comigo, tal e qual como dizem que acontece a quem morre de repente ou ver um rio na tua frente e não sei nadar. Sinto o vento na cara, escrevo algo na janela, respiro e escrevo poesias…

(eu ainda escrevo poesias).

Eu, aos 43 anos descubro uma dimensão onde ela vive e passo a viver do mesmo ar e da mesma sintonia, me derramo em poesias e percebo que pra ser feliz é preciso pouco.

Eu, aos 46 anos volto ao mesmo lugar de antes, o lugar das poesias que revisitam meus sonhos e vejo que é o mesmo amor e há certa fascinação pelo abismo que é onde estou de pés no chão, prontos pra voar.

(e eu ainda escrevo poesias) …

Eu, aos 48 anos reparo que as rugas redesenham meu rosto e que alguma coisa sempre dói quando me levanto. Ainda não tenho netos. Visito a floresta de vez em quando. Vasculho as flores em busca de vidas mínimas, descubro que gosto mais de mim agora.

(eu ainda escrevo poesias, mas que para isso preciso de encantos).

Eu, aos 57 anos, ainda tenho muitas perguntas sem respostas – também tenho muitas respostas para algumas perguntas. Ganhei uma neta e um neto de coração. Ainda me encanto com as vidas miúdas, ainda sou dominada pelos animais.

(e ainda escrevo poesia – mesmo que o encanto não seja o ponto principal.)

Mais do que escrever poesias, já tenho 6 livros publicados. Ainda enfeito as tranças com fitas de veludo laranja – embora de cabelos bem curtos – a menina que habita dentro de mim.

Mariana Gouveia

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Fazia o chá para além das xícaras

– era a espera antecipada da estação –
amanheceu hoje com gosto de inverno.

O meu quintal é alheio a tudo – tem vida própria – pássaros cantam.

Refaço horóscopos para o mês seguinte. Os astros estão em ebulição. A natureza grita pelo vento de um furacão.

Veria algo novo no raiar do dia…. A maresia chegou de mansinho pelas palavras dela. O pássaro voa alheio a tudo. O cão late na folha seca que cai.

Remexe nas sementes perdidas. Escoa a água da pia. O chá ferve.

Aprisiona desejos secretos. Ri sozinha dos pensamentos loucos.

Refaz o roteiro do horóscopo. Alterna os dias. Gelo para a luxação do pé. A dor acalma quando a alma dança. Chorou no poema que leu. Havia coração em toda parte.

Morde a fruta e vai esperar o dia de amanhã.

Mariana Gouveia
Desvios para Atravessar os Quintais
Entre uma estação e a primavera
Scenarium Livros Artesanais

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Revisitou o baú das lembranças.

Fez o café com a indicação da amiga — tirando a água antes que fervesse — aspirou o aroma e o sabor era o mesmo de sempre. Abelhas vasculham em busca de mel. O dia, na delicadeza das coisas era gris — a palavra lembrou uma canção — dentro dela escreveu rotinas, redesenhou segredos, esculpiu letras. Buscou temperos e adiantou a hora do lugar. Isso de fuso deixa tudo confuso.

Gerou três poesias…nasceu origamis no seu quintal. Colocou para voar o mais esperto e assim, os enjoos matinais no verbo nascer pedia ajuda na lição do dia. Enquanto gerava cantos na barriga, os pássaros de papel ganhavam a dimensão da asa.

Ali, presos, podiam voar.

Mariana Gouveia
Desvios para Atravessar os Quintais
Diário das Quatro Estações
Scenarium Livros Artesanais
Ph: Adam Klaus