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O gato com verbo no olhar

Não tinha uma única pessoa da redondeza que não tivesse ouvido falar do bichano, que tinha nomes vários e moradias muitas.
O gato era diferenciado e se eu gostasse de felinos, o teria levado para minha casa. Todo preto, com manchas brancas pelo corpo e patas, como se tivesse sido pintado com poás
Exuberante no andar. O seu miado era um canto agradável que ressoava pelo ar, provocando os cães, ao passear por cima dos muros, espiando a vida alheia com a indiferença típica de um bichano boa vida.
Eu fui uma das únicas a reparar que o felino tinha verbos no olhar. Tentei decifrar quais, mas comigo ele não falava, apenas com seus humanos de estimação, que me contrataram para bordá-lo.
D. Dalvinha, a síndica, foi a primeira. Quis uma almofada com a imagem do bichinho que ela chamava de Sebastian – e como ninguém podia saber que naquele apartamento havia um gato, ela murmurava o nome dele pelos cantos da casa, atraindo a atenção do gatuno que era astuto ao passar pela janela.

Sebastian não miava e não se enroscava nas pernas da mulher que o tratava feito um rei, mimando-o com guloseimas especiais. Ele se sentava no canto do sofá e o único movimento que fazia era o do rabo. O olhar era de um sedutor a se declarar… e ela se derretia por ele. Pediu que eu o retratasse em todos os detalhes, de cores e linhas.

Quando entreguei o trabalho, exigiu o gráfico. Grunhiu como uma felina. Não queria que eu voltasse a bordar o seu Gato, que ela acreditava ser apenas dela. Mal sabia que ao passar pela janela, ele seguia para o apartamento da frente, onde era conhecido por Tonico.
O vizinho de porta era um senhor elegante e solitário. Diziam pelos corredores do prédio que colecionava gatos – essa era apenas uma das lendas daquele velho edifício – um dos mais antigos do bairro.
O gato caminhava com cuidado ao passar em meio aos porta-retratos de Joaquim, que me convidou para bordar o bichano. Ele o queria retratado com uma mistura de cores… Tonico não se demorava por ali. A casa era limpa demais. Não havia almofadas para um cochilo e nem bolinhas de lã para enroscar as unhas afiadas. O homem tinha o estranho hábito de se sentar perto de seus porta-retratos, de frente para a janela, para espiar as próprias lembranças, que era tudo que lhe restava . Entediado, Tonico miava e partia para outro apartamento… onde encontrava água, comida e brinquedos com fios e cordas, além de areia sempre limpa. Gostava de lá…

Lambia as patas após as refeições e amaciava o travesseiro de Bia, que passava as tardes fora. Nos conhecemos no elevador. A minha bolsa caiu e ela reconheceu Mimi – o seu Gato, que esperava por ela atrás da porta e a recebia como um cão. Esfregava a cabeça em sua perna, esticando-se por inteiro, à espera de um abraço acolhedor. Dava para ouvir o ronronar do bichano que parecia ter a forma dos braços dela. Ao ver o gráfico em minha bolsa disse:
– Quero esse! Mas entre as patas, coloque uma linha natural. Gosto das unhas dele e da maneira como elas saltam para fora.
Foi o que me deu mais trabalho. Ela me fez mudar de cores várias e várias vezes e eu quase desisti da peça. Mas entreguei o trabalho e reparei que ela pronunciava o nome dele como quem toma um sorvete de flocos. Eu demorei para perceber que Sebastian, Mimi e Tonico eram o mesmo gato. E comecei a imaginar quantos mais seriam.
Ele era hábil em passear passear por muros, entrar e sair de apartamentos. Às vezes, percebia que ele me acompanhava ao longo da rua e quando eu dobrava a esquina, sentava-se e por lá ficava.
Nunca me seguiu até em casa, mas se o tivesse feito, teria que escolher um nome para ele . Talvez o chamasse de Maneco, em homenagem ao poeta.

Mariana Gouveia
O ano do Gato – Scenarium 8 – 2022
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