Caderno de Notas · Lunna Guedes · Mariana Gouveia

Lua de papoulas

lua de papoilas
*Imagem: Tumblr

Li apenas o prefácio do Livro Lua de Papel, que será lançado hoje e o primeiro capítulo é como água para quem tem sede do que vem ainda para ser sorvido, servido e tocado.
A coragem de escrever sobre um tema tão debatido hoje e ainda assim tão cheio de preconceitos é de inspirar, respirar e dizer em todas as palavras o que me tocou. Lá, na história que não li eu me vejo em cada uma a desvendar a reação e a controvérsia do que é “normal”. Nos meus guardados no baú, as folhas já amarelando de um tempo que nem tinha computador e os desenhos dos dias vividos tal qual como se alguém escrevesse agora.
Eu poderia usar o nome de alguém aqui, modificar, ou pegar apenas a letra inicial. Eu a chamaria de M e contaria das madrugadas risonhas no meu quintal contando estrelas. Poderia falar de infinidade de coisas e de afinidades de personalidades. Ainda assim, seria capaz de descrever cada palavra que foi trocada e de cada carícia dada.

Ela me deu Maio de presente e fez em meu outono florescer a primavera. Cada dia, em espécie de flor eu era vivificada na estação dela. E a mim, só era permitido voar. Enquanto a vida segue seu curso eu sonho.
Alguém lê poesias, escreve cartas, manifesta. Outro, não faz nada. Apenas caminha. Lunna lança livro. Enquanto ela visita um jardim de papoulas para avermelhar de cor o meu mundo.
Eu a amo.
Ela é quase silêncio preservado em sua intimidade. Eu, grito explodido em quatro ventos. Eu a exponho mais do que ela deseja e assim, mansamente ela aceita meu jeito de ser. A metade dela que posso oferecer e ainda assim, ela nem imagina que eu sou inteira dela.

Não sou nenhuma das personagens. Poderia ter sido. Poderia ainda ser. Tudo é tão novo e tão estranho. Distante e tão aqui. Vou estar presente onde não estarei fisicamente. Vou estar fisicamente onde não estarei no coração. Por que meu coração viaja, abraça mudanças, lamenta erros e ri diante das sensibilidades. Atravessa oceanos e mora ali enquanto durante o dia, Lunna anseia pela noite que vem. Pelas palavras que alcançarão o mundo e pela história que tão belamente descreveu. Poderia ter sido a minha. Mas não foi. As folhas se misturam e confunde-se em datas.
As mudanças se infiltram aqui. Sei que ninguém espera um mundo novo amanhã. O preconceito ainda estará dominante e absorvido, Mas escrever sobre o assunto é um sinal de que, as diferenças podem ser  respeitadas.
E dentro de todas essas mudanças ela ainda viverá dentro de mim nos Maios subsequentes e em todas as estações.

Mariana Gouveia

*Este post é parte integrante do projeto “Caderno de Notas – Terceira Edição”
Scenarium Livros Artesanais

Caderno de Notas · Mariana Gouveia

Assim passam os anos…

Assim passam os anos

8 de maio de 76.
Menina eu, ainda…onze anos corridos na leveza da vida. Tranças, risos, bolo de laranja. Brincadeiras no quintal. Os sete irmãos na corrida um do outro e todos de todo mundo.
Flor colhida no campo. Presente de amor.
O chá na xícara, a oração para os santos. O coro dos sete filhos. E ela, vibrante. No vestido de florzinhas miúdas, também de tranças e o bolo dividido entre todos. Era festa. A fogueira crepitava. A noite tinha a companhia da lua, das estrelas. O cheiro de flores do campo no ar.
Havia sido um dia especial.
8 de maio de 80.
A adolescência me roubava os dias. A xícara trazia o simbolismo do bolo. Já não eram os sete ali, juntos. Uns, não podiam entrar no hospital. A roupa era de um verde-pálido, uma camisola usada pelos pacientes. De onde estávamos, o bolo era cortado. A fogueira acesa, o parabéns cantado e a reza muda. Ao invés de felicidade, pedíamos saúde para ela.
O riso dela, mesmo longe, ecoava dentro de nós. Uma carta escrita e lida. Uma música pedida via rádio e o locutor junto com a gente canta a mesma melodia. Ela, distante, ouve e parece que nunca havia saído de lá de perto deles. Ela mesmo me disse isso um dia.
8 de maio de 82.
Já não podia mais a xícara, nem o bolo. A hemodiálise era alternada em dias. O parabéns quase em silêncio. Ela na janela, e nós no pátio do hospital cantávamos bem baixo, para o que a lei do silêncio permitia. A lua definia que era outono. E ela só chegaria até a primavera daquele ano.

Nos outros 8 de maios que vieram ela não era mais fisicamente. Ela estava na xícara, no bolo, no chá. Nos ensinamentos, na arte, no artesanato. No crochê feito. No olhar do filho que parece mais. Daquela que ri igual. Os setes nunca mais estiveram juntos ao mesmo tempo. Mas, em cada 8 de maio, enquanto os anos passam, cada um ao seu modo a faz viva. Era como se ela nunca tivesse ido.

Eu pego as fotos antigas. O álbum amarela e percebo nos dias que, assim passam os anos.
O cheiro do chá de hortelã invade o quintal. A lua, em diminuto mundo, mingua do tamanho da minha saudade.
O caldeirão de feijão que ficou comigo, o jogo de xícaras, e uma quebrou a asa na mudança depois da ida dela. O bolo já não é mais feito. O sabor da laranja evapora na saudade que ela deixa mesmo depois de 32 anos.
Parece que foi ontem. Mas, é hoje. 8 de maio de 2014.
A menina só existe no coração de poesia que ela bordou em mim e fez de mim o que sou e em cada dia que passa eu tento ser melhor, alma e espelho dela. A coragem, ordena em mim lugares todos os dias pelo mesmo hospital. As dores são outras, mas a fé é tão igual.
Os seis, cada um em um lugar diferente e eu aqui, com eles no coração e na mesma voz digo:
Feliz aniversário, mãe!
Mariana Gouveia

_ este post é parte integrante do projeto “caderno de notas – terceira edição” do qual participam as autoras Ana Claudia Marques, Ingrid Caldas, Lunna Guedes, Mariana Gouveia, Tatiana Kielberman, Tha Lopes e Thelma Ramalho.

 

Caderno de Notas · Mariana Gouveia

Se você é real por que você não vem?

Eu clave de sol,você clave de fá

“O Bosque existe!
É um dos meus lugares mágicos,
onde minha imaginação
anda de mãos dadas com a realidade.”

(Lya Luft)

Fecho os olhos e penso na possibilidade de a tocar. Embora seja sonho ou imaginação é assim que a toco: como se sagrada fosse.
As mãos desbravam a textura de sua pele e descobre o caminho suave do desejo.

Quase em prece eu fico idolatrando o encontro. Minhas digitais quase sinais de seus poros. É assim que pretendo encontrá-la. Entre quase o delírio e o prazer. Entre quase o delírio e a imaginação. A boca antecede o toque, saliva da vontade que emana em mim.

Chego descalça que é para tocar o chão com os pés e sentir a temperatura do corpo vibrar e subir como o sol que banha as flores do jardim. São os olhos dela que o céu refletia naquilo que eu via.
Desenhava corações em nuvens e era a voz dela que eu sabia e sentia na canção que tocava.

Era a claridade do espaço do abraço que havia. Do calor do corpo. Do tremor das mãos. A essência do dia parece pintura de Monet. O seu vulto na janela só suaviza o momento. Vou ao encontro dela. Calma, serena, úmida. Sedenta, ávida e desejosa. Era mais do que um encontro de mãos que se tocam, se descobrem e se completam. Como elos, se envolvendo, onde uma começa, a outra termina e inicia tudo de novo, até o ápice do amor.

A cortina dança na leveza do vento, eu respiro amor, respiro ela. E como se uma canção ela fosse, dedilho meus versos, poesia de pele e som. Falei dela. Com ela e me contou coisas dos astros, das estrelas. Revelou cenas do futuro: eu e ela de mãos dadas e o paraíso era um jardim;

O jardim que chamo de bosque, de floresta, que é onde a encontro. Transformei minha forma de ver a preto e branco e a colori de mundo, natureza. flor.

Ela era várias infinitudes, com ela agia de modo que não tivesse uma parte, mas, ela era inteira… Seu corpo, loucura e fonte das minhas manias. Meu mundo particular.

 Tão intensamente como se não houvesse mais ninguém. E não há.
Podia ser quase um sonho. Talvez tivesse sido. Mas também não era. Foi real. Podia ter apenas sobrenome de flor e ela era o jardim.

Mariana Gouveia *Este post é parte integrante do projeto “Caderno de Notas – Segunda Edição”, do qual participam as autoras Ana Claudia MarquesIngrid CaldasLuciana NepomucenoLunna Guedes,Maria CininhaTatiana KielbermanThelma Ramalho e a convidada Mariana Gouveia

Caderno de Notas · Mariana Gouveia

Quero outra manhã depois dessa madrugada

Quero outra manhã depois dessa madrugada

 

A porta entreaberta deixava a brisa entrar e tocar levemente meus cabelos, os dedos anelar e médio contornarem os cachos que se enrolavam na mão. Brindou a madrugada suave…
Era um costume antigo. Desnudar-se diante de si mesma, na madrugada. Rever momentos, buscar sentimentos internos dentro dela.
Conhecia todos os barulhos que havia por ali. Os grilos no quintal, um pássaro noturno pousado na árvore seca, encantado pela lua, o cachorro que latia ao longe. Até o motoqueiro do jornal, marcava a hora  sublime em que a madrugada terminava e uma nova manhã começava. Espreitava o céu e suas nuances matinais e as nuvens ganhavam tons de laranja. O sol, majestoso no seu deslumbre diário surgia lentamente, enquanto absorvia uma cumplicidade divina emanada pelo silêncio.

O vento começava quase tímido e aos poucos reverenciava o corpo dela dourando o quintal. As flores abriam as pétalas no alcançar belo da energia que vinha do astro rei.

Os pássaros, agora, em bando anunciavam um bailado comum e rotineiro. O beija-flor quase a tocava de tão perto que chegava dela. A manhã parecia bordada com detalhes em miçangas e a extremidade do dia nascia nela como poesia. As folhas, formava desenhos nas paredes do muro como se fossem pintadas com requintes de artista.

Uma mistura de lilás e laranja colore um céu que se azuleja e ela  pensava em uma canção.

Uma parte do dia começava linda por si só. Manhã única  e mesmo que houvesse tantas manhãs e presenciasse isso sempre, seria totalmente diferente todo dia. Ocupava-se dos pensamentos que os afazeres diários exigiam, ainda absorvendo a mágica da madrugada. Um misto de encanto e beleza. Sedução e ternura. Era como se a madrugada, ela e a manhã formassem  uma só coisa. Objetos dos mesmos lugar.
Se havia algum instante de liberdade, era esse. Pleno de sentidos e de sentimentos. Entrava casa adentro renovada e o sol beijava as coisas no sofá.
Uma luz sublime e que fazia o dia receber a graça de ser. Ela era aurora. Brisa, madrugada, manhã. Repetia frases dentro de si como se fosse um mantra:
“Quero outra manhã depois dessa madrugada, assim como quero outra tarde depois dessa manhã radiante”.

As cortinas voavam de um lado para o outro. O vento que soprava rangendo a porta dançava, ela dançava…A canção tocava no rádio em Sol Maior, onde as notas musicais eram acompanhadas pelos trinados dos pássaros, aves que a acompanhavam sempre no amanhecer.
Todo o corpo reage ao testemunhar esse momento sublime. E no final dia, ainda quase como um mantra ela ainda repetia:
“Quero outra madrugada viva depois dessa noite.”

Mariana Gouveia *Este post é parte integrante do projeto “Caderno de Notas – Segunda Edição”, do qual participam as autoras Ana Claudia Marques, Ingrid Caldas, Luciana Nepomuceno, Lunna Guedes, Maria Cininha, Tatiana Kielberman, Thelma Ramalho e a convidada Mariana Gouveia…