“Tomaste o caminho do vento e por lá te demoras”
– Isabel Mendes Ferreira-
Havia pouco tempo que eu morava ali. Mudamos dias depois que minha mãe morreu. Não sei se para meu pai ficar livre das lembranças e do cheiro dela na casa, nas coisas. O fato é que a casa nova tinha mais coisas dela do que a antiga. Ao arrumar os móveis, tudo era dela e tinha o seu jeito. Tudo foi arrumado, até inconscientemente, da maneira como ela gostava e o jardim, no fundo da casa, parecia haver sido plantado por ela.
Casa nova, novos vizinhos e foi ali, duas casas depois da nossa, para onde elas também haviam mudado recentemente. Um dia depois de nós. E pelo mesmo motivo. A perda da mãe. Elas eram Ana e Cristina. Gostei logo de Ana – tipo amor à primeira vista. Mas, foi Cristina quem ocupou espaço em minha vida. Era tipo aventureira, corajosa e nos empurrava para as experiências dela.
A casa delas tinha um sobrado com um quarto, mas que permanecia trancado desde que se mudaram. Na divisão da herança, elas ficaram com a casa, em que o tio havia morado a vida toda. A chave permanecia debaixo do tapete, antes da escada. E Cris, na sua impetuosidade, obrigou-nos a abrir a porta. Além da poeira em todos os móveis, que um dia retratarei com mais detalhes, havia um baú enorme e é claro que abrimos.
Entre roupas, pequenos bibelôs e livros, havia ali um diário, que as meninas interessadas em tesouro nem deram atenção. Logo começaram a dividir os objetos e, em meio a eles, um sapato de verniz roxo, que Ana calçou como se fosse uma princesa e, então, colocaram o diário em minha mão como presente. Foi ali que desejei ser escritora. Foi ali que desejei conhecer o amor que surgia à minha frente com uma história emocionante de Anna Lee e que retrato agora, em pequenas nuances, em um relato diário de amor:
“1º de abril de 1958 – o dia amanheceu nublado e frio. Nas ruas quase não havia ninguém. Foi quando ele surgiu não sei de onde. Vinha cabisbaixo como que procurando algo. Eu havia ido à janela abrir a cortina. Nossos olhares se encontraram e meu corpo reagiu ao encontro. Não sei o que senti, mas sei que foi algo que não poderia escrever sobre. O vento cantava a melodia das folhas das árvores e meu coração cantou junto. Desde que o mundo começou a ser mundo eu já te amava e te conhecia antes mesmo de ver-te. Ele seguiu rua abaixo olhando para trás de vez em quando, abraçando o próprio corpo, como para se aquecer. Aquele gesto mexeu comigo. Meus olhos seguiram e no buscar ele aonde a rua sumia, bati a cabeça na janela. Ele riu. Pude ver isso. Foi a maior certeza que tive em toda a vida. Eu já o amava.
2 de abril de 1958 – Ouvi um barulho na janela, como se fosse uma pedra. Não sabia o que era. Mas, já tinha a sensação plena dele correndo em meu sangue. O coração acelerado, e as mãos suavam, apesar do frio. Quando cheguei à janela, lá estava ele… O sorriso que eu imaginara no dia anterior agora tomava seu rosto e os olhos me desenhavam um horizonte em que eu queria morar a vida inteira. Se possível, morrer dentro deles”.
O diário relatou aos meus olhos uma história de amor. Que descrevi e que vai virar livro. Ana e Cristina foram frutos desse amor. Embora só tivessem descoberto mais tarde. E nós descobrimos um tesouro. A vida nos distanciou nas lembranças, nas histórias livres de cada uma. Ana se tornou enfermeira, profissão que a mãe teria, se não fosse tudo que aconteceu pelos dias dela. Cristina cumpriu a sina de aventureira e perseguiu seu sonho de conquistar o vento.
Quando me chegou o tema do Caderno de Notas desta quarta edição, tive a certeza de que teria de falar sobre isso. Porque o assunto era exatamente o tema do diário escrito por uma mão que já amava alguém antes de o mundo ser mundo.
Mariana Gouveia
*Este post é parte integrante do projeto “Caderno de Notas – Quarta Edição”
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