Guardo numa gaveta de velhos objectos as tuas palavras,
até que o bolor do futuro as apague
– para que só eu saiba o que nunca me disseste.
Nuno Júdice
Leonor,
o ano já rompeu seus dias por aqui e só hoje lembrei de que não te escrevo há algum tempo. A moça que me escuta uma vez por mês diria que isso é bom e mandou que eu retirasse seus resquícios por aqui. Mas como se faz isso, Leonor? Pode me dizer como? Ainda tenho a moldura com sua foto antiga. Confesso que já coloquei ela na lata do lixo duas vezes e corri para recuperar antes que os garis levassem.
As louças que você trouxe e deixou aqui, com a promessa de que buscaria. Até a faca, Leonor? Lembra da faca que você comprou para cortar peixe? E as borboletas que enfeitavam a mesa e os pratos… não posso simplesmente jogar fora, como se não tivessem qualquer valor. E se um dia você aparecer e querer de volta?
De seu também ficou o vidro de perfume vazio – que ainda tem seu cheiro mesmo depois de tanto tempo – e o saquinho com ervas que eu mesma bordei. Era para você ter levado. Não sei se você deixou de propósito, com o intuito de deixar lembranças suas pelo meu lugar.
E as conchas, Leonor? Era para trazer o mar até o meu quintal… ficaram em cima da estante, com suas cores vibrantes e a estrela vermelha – tão nossa – se sobressai. Vai me dizer que não são resquícios seus? E nem falei das cartas emboladas no baú e dos envelopes abertos, com sua caligrafia.
Sabe, Leonor, de todas as lembranças as das manhãs são as mais recorrentes. O bule decorado com las farfallas ficou intacto na mesa. nunca mais coloquei o chá nele… e o quer café, flor? – eu ainda pergunto toda manhã, nas conversas com os cães.
Mas aqui, só ficou a xícara vazia dentro da memória. O pires exposto, sendo pouso para a colherzinha assim como suas mãos foram pouso para as minhas. São tantas coisas, Leonor, que não consigo enumerar assim, de súbito, numa carta – a primeira do ano. Será que ainda te escreverei mais vezes? Vou deixar que o tempo cuide disso e que suas lembranças comecem a ser aqui, para mim, apenas resquícios.
Beijo meu,
Mariana Gouveia
Projeto fotográfico 6 on 6
Scenarium Livros Artesanais
Participam comigo:
Lunna Guedes – Suzana Martins – Roseli Pedroso – Obdúlio Nunes Ortega