Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: “Fulano de tal comunica
ao mundo que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio”.
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir
a despedida. Apertos de mãos quentes.
Ternura de calafrio.
“Adeus! Adeus!”
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes
… (primeiro, os olhos… em seguida, os lábios… depois os cabelos…)
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo… tão leve… tão subtil… tão pólen…
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis…
José Gomes Ferreira
rasgando os dias no calendário já conto 39 anos que você se foi… seria estranho dizer que parece que foi ontem e que sua falta é esse abandono na alma. Queria que fosse igual ao poema e pudesse te alcançar em uma nuvem… mas, as nuvens são feitas para chuvas – você diria – ou para desenhos engraçados no céu.
Confesso que gostei mais da alusão das nuvens, do que da fumaça, que ronda meu lugar, o cerrado transformando em um cenário desolador. Não sei se você gostaria desse tempo…
Além dos aniversários, eu te escrevo sempre nessa data, como forma de te manter aqui, ainda na memória viva do tempo em que fui sua filha. Não temos muitas fotos suas e as que tínhamos se perderam em álbuns guardados em fundos de baús. Essa, acima, recebi a pouco tempo e lembro-me bem desse riso, dessa pose e de tudo que retrata a fotografia. Lembro-me até da cor do vestido, que foi feito por você quando saiu do luto pela partida do meu avô.
Hoje, falando com uma amiga, em outro contexto, falei sobre a canção que fala do sol quarando as roupas no varal e essa é uma memória que nunca vai se apagar de mim… os lençóis sendo quarados, o cheiro de roupa limpa, o anil sendo preparado para as roupas… nossa, mãe! Parece que é agora e já foi há tanto tempo.
Essa carta é só para dizer que ainda tenho tantas perguntas sem respostas, mas que também tenho recordações de tantos momentos que dizem muito mais do que posso escrever. As perguntas ficarão para outro momento, dentro de um tempo em que poderá responder.
Um abraço cheio de saudades,
Mariana Gouveia
25 de Setembro de 2021.
💜
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Grata ❤
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E eu comecei um comentário que ficou imenso e eu levei comigo… Catarina depois lhe dá notícias. grazie cara mia e um abraço enorme in tuo cuore.
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Grazie, bambina mia! Estive lá e fiquei com a emoção a atravessar o cuore.
Bacio
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