Estou de volta pro meu aconchego
Trazendo na mala bastante saudade
Querendo um sorriso sincero, um abraço
Pra aliviar meu cansaço
E toda essa minha vontade
(Dominguinhos)
Querido lugar,
Enquanto atravesso a ponte de madeira ouço o barulho do rio a serpentear por entre as árvores. Devo te confessar que o bosque perto do rio é meu lugar preferido nessa cidade onde nasci e cresci. Posso fechar os olhos e mesmo assim, reconhecer cada árvore, cada pé de fruta, cada trieiro que me leva sempre ao mesmo tempo, mesmo tanto anos depois.
Estou de volta, para rasgar as promessas feitas em um tempo de felicidade. Um tempo em que as fotografias em preto e branco tingia as paredes da sala cheia de cor no riso dos irmãos.
Parece que as coisas não passaram por aqui. Até a ave noturna é a mesma – pelo menos o canto – e isso atiça minhas memórias anos atrás quando vim aqui me despedir. Naquele tempo, meu coração possuía o encanto da juventude e jurei nunca esquecer esse lugar e prometi voltar assim que pudesse.
Não sei quantas noites, de olhos fechados, cruzei a ponte nas lembranças e me sentei de frente a esse rio com suas margens cheias de memórias e chorei. A alma não queria ter saído daqui. Foi ali, o primeiro beijo em um amor que nem lembro o nome. Também foi ali o tombo e a perna quebrada para tantos dias e onde a primeira borboleta pousou na mão e me fez criadora de asas. Aqui, as lembranças têm o cheiro de roupa limpa e vem na memória o ritual da minha mãe a quarar os lençóis de linho nas pedras do lado enquanto cantava uma canção regional do lugar.
As ruas mudaram, é verdade – não há mais os paralelepípedos na rua principal – e a matriz ganhou uma fachada moderna. De resto, a minha cidade está cheia de passado… no colégio em que estudei, a pintura ocre é a mesma de que eu me lembrava e o portão range como se chorasse por eu ter ido. O mercadinho da esquina – que era nosso e um tio comprou, ainda tem os potes de doces expostos e o sabor do pé de moleque, baba de moça e maria mole é quase uma oração.
O tempo não passou… sou eu ainda, a menina a decorar poemas no banquinho da praça e as tranças presas com a fita de veludo laranja a ecoar saudades.
O tempo passou, sou eu mais uma vez, de frente com meu passado que me transformou em tudo que sou hoje e que reativa a memória com os sabores, as cores e as lembranças de um tempo que insiste em morar nas fotografias da estante. A relutância em tirar fotografias me faz sair emburrada em quase todas, mas a família toda reunida em frente da casa para registrarmos o amor em dimensão de tempo, um dia.
Mariana Gouveia
Carta publicada no Caderno de Notas
Scenarium Livros Artesanais
Participam dessa blogagem coletiva:
Adriana Aneli – Alê Helga – Claudia Leonardi – Darlene Regina – Lunna Guedes – Obdulio Ortega – Roseli Pedroso
Your words always take me to that place you describe. Just wonderful, Marianna.
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I thank you immensely, my dear Angela ❤
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Oh, it’s definitely my pleasure!
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❤️🌸
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Retornar é sempre um misto de tristeza de um tempo que não mais volta e alegria por de alguma forma, resgatar pessoas e situações vividas. Belo texto!
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Grata mais uma vez, Roseli! ❤
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A memória chega a ser algo inexplicável para alguns. A minha vive a me pregar peças. É comum carregar em minha lembrança coisas aparentemente sem importância e me esquecer os nomes de pessoas com quem convivi por anos. Eu me lembro do meu primeiro beijo e com quem foi, apesar de não ter sido um relacionamento que durasse. Quanto aos lugares importantes da minha vida, sonho com eles até hoje e estão como os conheci. No sonho, na vida consciente, alguns nem existem mais…
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A memória é essa caixinha de surpresa… e a gente vai tirando uma a uma em alguns momentos. Abraço
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Com certeza!
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Grata ❤️🌸
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Bravo, cara mia…
eu fiquei ali, a espiar a menina que decora poesia na praça e a mulher que observa os movimentos das águas no Rio.
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Grazie, bambina! ❤
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E assim ficamos a conhecer o lugar! Belo texto!
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Grata, ❤
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que texto lindo! muito belo de ver o papel do pertencimento do vivido na referência do lugar.
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Muito obrigada! Fico feliz que tenha gostado. Abraço
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