
E depois o dia voltou como habitualmente…
Marguerite Duras
Querida minha,
Escrever-te, é essa falta de fôlego na alma. Até onde o coração, feito de palavras, alcança seu amanhecer? Até onde, esse mesmo vento invade tua quase manhã – enquanto aqui é madrugada – e balança ao mesmo tempo as cortinas das janelas, nesse lado de cá?
Mas aqui, ainda era noite e a solidão das horas fazia com que no quintal nenhuma luz brilhasse. Eu já te disse que em muitas noites que passei em branco foi ouvindo o tic tac do relógio marcando o tempo sem você? E que de olhos fechados o vácuo entre a madrugada e o sol raiar lá fora, passa uma imensidão de tempo dentro dessas mesmas horas?
Devo confessar que morri em muitas dessas noites brancas. De uma página em branco, ninguém se livra. Havia corredores imensos em minhas veias que se fechavam. Pássaros noturnos traziam os sons da noite e ainda era meia noite e meia. Os vagalumes invadem a lateral do muro em noite sem lua e lá, acontece um ritual que admiro no escuro. Nessa hora, viajo nas lembranças da infância e quase esqueço desse fuso horário que separa meu sentimento da vivência.
Mas as lembranças saem e retorno ao vazio branco da noite. As lâmpadas da rua queimaram – ou apagaram – por algum motivo. Só tem uma penumbra tênue e quase embaraça as vistas quando vejo os vultos no quintal.
As sombras das árvores parecem fantasmas com suas garras sobre o momento que não passa. Às vezes, a vida dói! O conta gotas do floral é quase mantra diante da ansiedade oculta durante o dia. Como se o dia nascesse na liberdade desse sentimento! Como se a essência da planta invadisse a passiflora que desenha um botão na madrugada quente. O botão da flor é essa singeleza da cor que traz a beleza de noites imensas mergulhada no silêncio.
Na paisagem interior, as lembranças ecoam nos retratos expostos na estante, enfileiradas sob uma toalhinha de crochê. E me vi percorrendo mapas traçados na mente, com o dedo traçando teu nome nas vidraças, na poeira dos móveis que enfrenta a solidão junto com o licor de pequi.
Lembro que talvez, você nem entenda a palavra e nem o sabor exótico do meu lugar. Era tudo tão além da presença, que ainda escrevo como se você estivesse aqui.
E é tão lá essa distância e é tão aqui esse sentimento que simboliza tua falta na noite. Acho que te contaria uma história. Talvez, te marcaria na soma do amor enquanto os cães latem para alguma coisa que não consigo ver o que é. E os bibelôs parecem que conversam entre si e riem de minha insônia e falta de jeito para lidar com essa solidão.
Qualquer pergunta fica sem resposta e enquanto na rua reina um silêncio absurdo ouço o slogan da emissora de tv – plim plim – em alguma casa vizinha.
De noite, todos os gatos são pardos… – já li isso em algum lugar, mas é mentira. O Iglu – gato branco da vizinha da casa de baixo – passeia em cima do telhado como se estivesse em um desfile e os cães com sua gana de sangue rompe o silêncio da madrugada até que Iglu em sua pose de estrela atravessa todo muro como se provocasse os cães.
A madrugada chega dominadora. Quase refém dos ponteiros que insistem para o dia clarear.
Sinto o cheiro das ervas sendo tocadas pelo orvalho. A madrugada tem essa magia de tocar na suavidade das flores. O vento, é só um afago na alma enquanto chamo seu nome.
Cadê você que nem cabe nas letras? E quando a falta é só esse vazio de água, de maresia, de ar…
O que procuro nessa imensidão de noite quando a palavra rio ecoa feito onda? Só mais tarde entendi o que procurava – um mar.
Beijos
Mariana Gouveia
Carta publicada no Caderno de Notas
Scenarium Livros Artesanais
Participam dessa blogagem coletiva:
Adriana Aneli – Alê Helga – Claudia Leonardi – Darlene Regina – Lunna Guedes – Obdulio Ortega – Roseli Pedroso
Eu, que estou no alto do planalto, longe do mar, tento buscar o meu mar interior, cada vez mais raso. Estou vendo o momento que terei que voltar a encontrá-lo o mais rápido possível, Mar e Ana.
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Fica firme, marujo! Logo essa maré passa e o mar voltará a dar peixe… Abraço
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Os objetos dessa imagem me trouxeram tantas lembranças… o “casal de namoradinhos” que havia na casa de minha avó. Parabéns pelo texto, leve e carregado de sentimentos.
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Muito obrigada, minha querida! Abraço carinhoso ❤
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E agora eu volto para casa, depois de atravessar o oceano, e espio a infância e sorvo o ar salgado.. bela missiva, cara mia
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Grazie, bambina! Há uma lua imensa no céu e chamo tuo nome…
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Beautiful and descriptive writing.
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Thanks! ❤
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A imagem que a foto nos mostra, lembrou o tajer, na ala de minha avó Maria. Tinhas bebelôs semelhantes e essa toalhinha… Quantas lembranças! Das noites brancas ninguém escapa… Lindo demais!
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As noites brancas são as mais difíceis, Roseli… o mais importante é que elas passam… ❤
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This is so awesome!
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Thank You! ❤
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