Mariana Gouveia · Scenarium Livros Artesanais

b.e.d.a – Carta de Mariana para Alice, no País das Maravilhas

“Quando acordei hoje de manhã,
eu sabia quem eu era,
mas acho que já mudei muitas vezes desde então”.
In Alice no País das Maravilhas


Querida Alice,


É estranho falar com você assim, no meio do meu quintal, através de uma carta – se bem que você já deve ter vivido tantas coisas estranhas que isso seria só mais uma. O meu quintal tem um portão imaginário, que é onde atravesso agora e te escrevo. Tomara que eu não perca a saída quando tiver de ir. O risco é grande, já que é um mundo novo por onde caminho agora.

As borboletas vagueiam por aqui. Pousam em minha mão e buscam as flores da Maria-sem vergonha. Tiro o relógio, Alice, na ilusão das horas não passarem e caso você querer saber se será hora de ir, digo que ainda há tempo. Tempo é essa coisa doida que toma conta da vida e quando você percebe já é tarde demais.

Te conheci ainda criança… quase menina-moça. Ganhei o livro do padrinho que só aparecia em datas especiais, tipo Natal, dia das crianças, aniversários e essas coisas que o mundo mudou com o tempo. Tínhamos a festa da colheita e o pedido era para minha mãe fazer um vestido para mim igual ao seu que vi no livro. Hoje, recordando, lembro que o livro e o vestido se perderam no tempo. Mas, aquele dia em que vesti o “seu” vestido está vivo na memória e posso desenhá-lo a você.

Foram dias de costura… minha mãe se preocupava com cada detalhe e eu, em minha ansiedade de filha ao pé da máquina, a observar o trabalho sendo feito, com mil perguntas sobre os sonhos, enquanto ela ficava a responder quase em sussurros conversava com a máquina que respondia com seu pedal rangendo. Pregava as fitas, fazia o plissado da saia… olhava o livro. Pedia para eu ler e explicava para mim que a ansiedade era normal na minha idade. Eu achava estranho a ansiedade ser normal, mas ela dizia que quando a gente é criança a tendência é achar tudo estranho mesmo.

O azul do tecido parecia esse céu de agora. A maciez do pano me enternecia. E quando vesti, me senti a menina mais linda do mundo. Por alguns instantes, eu fui, Alice! Vestida de você eu fui a rainha da festa e me senti maravilhosa. Os olhos de minha mãe brilhavam e me seguiam a cada direção que eu fosse. Dias depois, ela se foi. Deve estar em algum país no infinito que ainda não sabemos o nome. Virou estrela nesse céu, da cor do seu vestido.

Eu cresci e o vestido se perdeu em algumas dessas mudanças que meu pai fazia. Só que continuei a sonhar com seu mundo e com toda a leveza que as palavras me traziam.

Hoje, vivo a magia da maravilha de viver. Também criei meu mundo de maravilhas no meu quintal, onde os animais têm hora e vez, as borboletas nascem aos montes sempre… e meu pé de hibiscus mutabilis faz a transformação das flores – pura magia. As flores nascem brancas pela manhã e ao meio-dia ganham o tom de rosa mais lindo que há.

O pé de algodão dá flores amarelas e, assim que murcham, preparam seu capucho tão branquinho, que parece as nuvens do céu.

O tempo anda a correr, Alice… tudo passa tão depressa agora, que contando isso para você, parece um século. O tempo voa! Até o meu relógio que fica num tique-taque incessante numa frequência absurda. Ao menos tudo fica meio calmo nas manhãs pouco antes de eu entrar com minha senha do seu mundo para o mundo real. As manhãs é a melhor parte, porque é quando meu beija-flor vem… e pousa no meu colo enquanto converso com meu amor. Vou dizendo sobre o movimento das nuvens e até mostro o laranja a se desenhar no céu. O relógio, por vezes me assusta e, quando percebo, tenho de sair em desabalada carreira porque é hora, e ela não espera. Disso você entende muito bem. Mas quando a hora não antecede os instantes, Alice, é mesmo uma maravilha! O sol percorre o firmamento com seus raios, desenhando cores no amanhecer e muitas vezes ele se encontra com a lua numa explosão cósmica de amor. É a coisa mais linda.

Ah, esse tempo maluco, Alice. Às vezes, nem parece passar… veja você e seus magníficos 150 anos e a leveza de menina ainda.

Suas aventuras são lidas e há sempre uma menina a desejar ser você… e é essa a magia que seu nome traz. É essa a magia de se pertencer ao País das Maravilhas.

Preciso ir, Alice… o caminho se abre diante dos olhos e guardo você dentro do seu mundo enquanto o mundo real me chama. A vida é esse momento repetindo instantes. O resto, é conto de fadas. Então vamos lá vivê-la.

beijos,

Mariana Gouveia
*imagem: Pinterest
Carta publicada na Revista Plural 1900 – Scenarium Plural Editora
*b.e.d.a — blog every day april — um desafio que surgiu para agitar os dias de abril e agosto nos blogues e comemorar o Blog Day.


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