
“Quando acordei hoje de manhã,
eu sabia quem eu era,
mas acho que já mudei muitas vezes desde então”.
In Alice no País das Maravilhas
Querida Alice,
É estranho falar com você assim, no meio do meu quintal, através de uma carta – se bem que você já deve ter vivido tantas coisas estranhas que isso seria só mais uma. O meu quintal tem um portão imaginário, que é onde atravesso agora e te escrevo. Tomara que eu não perca a saída quando tiver de ir. O risco é grande, já que é um mundo novo por onde caminho agora.
As borboletas vagueiam por aqui. Pousam em minha mão e buscam as flores da Maria-sem vergonha. Tiro o relógio, Alice, na ilusão das horas não passarem e caso você querer saber se será hora de ir, digo que ainda há tempo. Tempo é essa coisa doida que toma conta da vida e quando você percebe já é tarde demais.
Te conheci ainda criança… quase menina-moça. Ganhei o livro do padrinho que só aparecia em datas especiais, tipo Natal, dia das crianças, aniversários e essas coisas que o mundo mudou com o tempo. Tínhamos a festa da colheita e o pedido era para minha mãe fazer um vestido para mim igual ao seu que vi no livro. Hoje, recordando, lembro que o livro e o vestido se perderam no tempo. Mas, aquele dia em que vesti o “seu” vestido está vivo na memória e posso desenhá-lo a você.
Foram dias de costura… minha mãe se preocupava com cada detalhe e eu, em minha ansiedade de filha ao pé da máquina, a observar o trabalho sendo feito, com mil perguntas sobre os sonhos, enquanto ela ficava a responder quase em sussurros conversava com a máquina que respondia com seu pedal rangendo. Pregava as fitas, fazia o plissado da saia… olhava o livro. Pedia para eu ler e explicava para mim que a ansiedade era normal na minha idade. Eu achava estranho a ansiedade ser normal, mas ela dizia que quando a gente é criança a tendência é achar tudo estranho mesmo.
O azul do tecido parecia esse céu de agora. A maciez do pano me enternecia. E quando vesti, me senti a menina mais linda do mundo. Por alguns instantes, eu fui, Alice! Vestida de você eu fui a rainha da festa e me senti maravilhosa. Os olhos de minha mãe brilhavam e me seguiam a cada direção que eu fosse. Dias depois, ela se foi. Deve estar em algum país no infinito que ainda não sabemos o nome. Virou estrela nesse céu, da cor do seu vestido.
Eu cresci e o vestido se perdeu em algumas dessas mudanças que meu pai fazia. Só que continuei a sonhar com seu mundo e com toda a leveza que as palavras me traziam.
Hoje, vivo a magia da maravilha de viver. Também criei meu mundo de maravilhas no meu quintal, onde os animais têm hora e vez, as borboletas nascem aos montes sempre… e meu pé de hibiscus mutabilis faz a transformação das flores – pura magia. As flores nascem brancas pela manhã e ao meio-dia ganham o tom de rosa mais lindo que há.
O pé de algodão dá flores amarelas e, assim que murcham, preparam seu capucho tão branquinho, que parece as nuvens do céu.
O tempo anda a correr, Alice… tudo passa tão depressa agora, que contando isso para você, parece um século. O tempo voa! Até o meu relógio que fica num tique-taque incessante numa frequência absurda. Ao menos tudo fica meio calmo nas manhãs pouco antes de eu entrar com minha senha do seu mundo para o mundo real. As manhãs é a melhor parte, porque é quando meu beija-flor vem… e pousa no meu colo enquanto converso com meu amor. Vou dizendo sobre o movimento das nuvens e até mostro o laranja a se desenhar no céu. O relógio, por vezes me assusta e, quando percebo, tenho de sair em desabalada carreira porque é hora, e ela não espera. Disso você entende muito bem. Mas quando a hora não antecede os instantes, Alice, é mesmo uma maravilha! O sol percorre o firmamento com seus raios, desenhando cores no amanhecer e muitas vezes ele se encontra com a lua numa explosão cósmica de amor. É a coisa mais linda.
Ah, esse tempo maluco, Alice. Às vezes, nem parece passar… veja você e seus magníficos 150 anos e a leveza de menina ainda.
Suas aventuras são lidas e há sempre uma menina a desejar ser você… e é essa a magia que seu nome traz. É essa a magia de se pertencer ao País das Maravilhas.
Preciso ir, Alice… o caminho se abre diante dos olhos e guardo você dentro do seu mundo enquanto o mundo real me chama. A vida é esse momento repetindo instantes. O resto, é conto de fadas. Então vamos lá vivê-la.
beijos,
Mariana Gouveia
*imagem: Pinterest
Carta publicada na Revista Plural 1900 – Scenarium Plural Editora
*b.e.d.a — blog every day april — um desafio que surgiu para agitar os dias de abril e agosto nos blogues e comemorar o Blog Day.

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