Caderno de Notas · Mariana Gouveia

Pé de vento

is life 207-1

         Apenas os espelhos esvoaçam em redor da cabeça morta violentamente sobre ideias.
E a imagem conglomera-se.
Oh cabeça, escuro labirinto duplo,
madeira trémula, espelho espelho,
com sua imagem de um lado delirante,
e sua arguta flor, seu pássaro cheio de sons emplumados.

(Herberto Helder)

Em frente da casa dela tinha um pé de vento. Morava ali desde quando era menina. Bastava passar pelo o portão e o vento surgia rotineiro nas saias dos seus vestidos, nos seus cabelos. Havia um menino que brincava com o vento. Corria a empinar sua pipa. Nessa hora entrava para dentro e dava as costas para a noite, que se desenhava lá fora.
E o vento se tornava enfurecido na janela. Assoviava amedrontando as cortinas.
A árvore tão forte e que já era grande quando ela nasceu, retorcia seus galhos e espalhava suas folhas pelo quintal. Durante o dia aventurava-se a enfrentar o vento. Saía devagar e debaixo da figueira e abria os braços e dançava. Trazia o riso de louca no olhar. Enfrentava vez ou outra o desafio de ser ela mesma, ali, na rua nua de risos. Janelas fechadas, portões que rangiam em sintonia com o vento. Ninguém nas calçadas perdidas. Nenhum som se ouvia pela rua inteira. Apenas o menino que corria com sua pipa ladeira abaixo. Parecia voar e olhava para ela com medo. Sentia isso. Seu olhar percorria o olhar do menino e ao sentir o medo dele entrava na casa de novo e dali da janela, entre as cortinas medrosas, olhava o vento dominante. Sabia que ria dela.

Olhava a mesa e havia ali, deixado pela mãe o copo de água e o comprimido. Lembrou do cata-vento que ganhou para brincar com o vento e que ela preferia usar os dedos imitando um. Alguém dissera que o vento ali, era amigo. Alegrava a alma. Mas, ela não sabia se isso era verdade. Nem sentia se era.
O que era verdade, vinha da palavra loucura que assombrava os dias. Tremia nos silêncios dela. Via ela estampada nas lembranças que insistiam em percorrer todas as noites os mesmos caminhos.

Na casa dela os objetos mudavam de lugar. As fotografias ficavam na cozinha no balcão cheio de tecidos do lado da máquina de costura, onde a mãe ficava o dia todo e parte da noite debruçada fazendo roupas para as pessoas. As fotografias ali, entre as linhas e agulhas. Volta e meia via a mãe espiar os parentes nos retratos amarelados pelo tempo. Percebia que chorava às vezes. Havia sempre uma cadeira na varanda que atrapalhava o corredor. A cama da mãe era na sala. Mas, ela desconfiava que a mãe não dormia nela há muitos anos. O sofá, que ficava perto da pia, já tinha o corpo da mãe tatuado do lado direito.

Havia mais janelas que cortinas. Esqueceram o rádio ligado e o gato de porcelana que ficava a olhar o pé o tempo todo e a mãe sempre dizia que havia ganhado no dia do casamento morava na mesa ao lado das taças que ninguém nunca bebeu nada nelas e embaixo de um quadro sem definição alguma e que ela nunca entendia porque a mãe ainda mantinha um quadro ali. Era um quadro bordado por uma bisavó ou tetravó. Tinha não sei lá quantos anos. Um rosto bordado que acabava em vários outros, onde as linhas haviam sido rompidas por uma limpeza mais abusada.

Assim, ela passava os dias e durante a noite ficava com as cortinas abertas, para que a luz da lua entrasse e seus dedos ágeis imitavam cata-ventos. Via a treva engolir a noite e o dia ir. Assim como ela ia sempre embora para dentro de sua loucura no fim da noite. Ia embora com o pé de vento.

Mariana Gouveia

 

*Este post é parte integrante do projeto Caderno de Notas – Quarta Edição, do qual participam as autoras Aurea Cristina, Claudia CostaFernanda FarturettoLunna GuedesMaria CininhaMariana Gouveia e Tatiana Kielbeman

 

6 comentários em “Pé de vento

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