Tropeço nas coisas que eu mesma esqueci pela sala. O interruptor acende ao meu toque e a luz pálida ilumina lugares que prefiro nem ver. As fotos dispostas em fila no balcão, a agenda esquecida ainda de manhã. Na geladeira, não há quase nada comível. Apenas um tomate que escapou da última salada, alguns biscoitos recheados e um iogurte com data de validade suspeita. Respiro resignada.
A mente me leva para lugares onde eu gostaria de estar. Talvez nem desejasse tanto, mas era exatamente onde me caberia nesse instante.
Da janela, vejo vultos das folhas do hibiscus mutabilis que dançam a melodia noturna e brinca com a lua que desafia o equilíbrio da cortina.
Não gosto desse espaço de solidão dentro de mim. Converso com os cachorros para esvair a sensação do sozinha que me atinge, mas parecem tão solitários nos sonos de cada um que nem me ouvem. Abanam o rabo quase que instintivamente para voltar a sonhar no mundo dos cães.
O chuveiro me convida para o banho. A melodia da água caindo quase me acorda desse torpor, mas foi só a solidão desamparada que esfrega na minha cara do quanto essa casa foi cheia de vida, de gente, de presenças. Eu estou só. Pela primeira vez em tantos anos que não lembro quantos. A cama é só minha e isso é mais angustiante do que os barulhos que ouço.
Conto carneiros, conto estrelas, canto canções e o sono vagueia pelo lugar onde os cachorros dormem. Fugiu da minha cama, acelerado, como se adivinhasse que as lembranças e a tal liberdade conquistada não são coisas para se viver dormindo. Por companhia, só a lua que agiganta diante de mim e do vazio da solidão.
Mariana Gouveia
*Este post é parte integrante do projeto “Caderno de Notas – Quarta Edição”, do qual participam as autoras Aurea Cristina, Claudia Costa, Fernanda Farturetto, Lunna Guedes, Maria Cininha, Mariana Gouveia e Tatiana Kielbeman
há um sol onde se abrem as flores. ainda que cinzentos os dias. ainda que tristes as mãos. e uma luz que se acende. ainda que os olhos cansados se fechem. esquecidos de amanhecer.
não há chão bravio que não acolha a semente. ainda que muito tarde. ainda que muito frágil.
há um sol onde se abrem as flores.
rmr
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Eu estou só! é uma constatação desconcertante que você desenhou com delicadeza.
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Tu, sempre generosa comigo, Aurea. Nas delicadezas das palavras.
beijos
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Adoro Rosa Maria Ribeiro. Ela escreve tão bem.
Grata, Leonor.
Beijos
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Clap, clap, clap… Foi a noite desenhada em letras, mais bela, ainda que dolorosa, que já li.
Só você para adoçar a dor. Belíssimo, minha linda.
Beijos meus,
Cláudia
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Tão doce tu, Claudia minha…( e eu, cheia de posses.)
beijos
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Minha cara Mariana, par alguém, como eu, que nos últimos dias só viveu uma lua de papel, aventurar-me pelas suas palavras, fechando os olhos e, despertando, é um suspiro ameno, agradável que a alma embala e deixa para mais tarde. rs
bacio
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Ansiosa para entrar em sua Lua de Papel!
bacio, Lunna mia!
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Gostei muito!! Beijos
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Beijos, Su!
🙂
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Quando ouço/leio a palavra noite me vem à memória uma canção:
Noite…por que é que na noite a dor da saudade é mais fortes?
é isso que a noite faz.
Beijos, Tati
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Linda poesia… que descreve a nossa faceta lunar, feminina, tão emocional, dolorida e abismal. Que o dia ilumine e nos aqueça, sem apagar a beleza do luar. É isso aí, um abraço. 🙂
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As poesias são assim. Devem conter tudo.
Amém! Que essa beleza permaneça em ti também. Beijos
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Estamos todos à sós. Pra mim, foi isso, dito de um jeito lindo.
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A solidão às vezes é linda também.
Beijos, Mariel
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